Uma falsa esperança
Por singularidade entende-se o momento em que uma “Inteligência Artificial” (IA) alcançaria o estado de consciência própria. O termo é do matemático John von Neumann, mas sua aplicação no campo da IA se popularizou com o escritor de ficção científica Vernor Vinge.
Notícias relativas à singularidade costumam atrair grande atenção da mídia que apressadamente acolhe qualquer entusiasta defendendo que repensemos, em termos de igualdade, nossa relação com as máquinas. Isso não foi diferente quando, há alguns meses, um engenheiro do Google saiu a público garantindo que um robô de bate-papo havia adquirido consciência.
No fundo, essas atitudes descrevem uma esperança cega na realização de um ideal de ficção científica e quando averiguamos as suas motivações, encontramos uma ideia muito simples: “não há diferença entre percepção e pensamento abstrato” ou “o pensamento abstrato nada mais é que o processamento de uma coleção de dados sensíveis”. Por exemplo, com uma base de dados e um poder de processamento suficientes, uma IA poderia “saber” ou ser “consciente” de que tanto este “Pinscher” quanto este “Pastor Alemão” são ambos “cachorros”.
Mas o pensamento abstrato é irredutível ao nível da apreensão sensível. Nossos sentidos só conhecem coisas particulares. Eu vejo e cheiro esta rosa, mas não “rosa em geral”. A imaginação também é um tipo de sensibilidade, uma vez que ela apreende somente o que é concreto: esta rosa, este cão, este triângulo etc. O intelecto, porém, forma o conceito universal de “rosa” que pertence a cada rosa individual que é, que foi e que será. Sempre.
Não é difícil compreender que uma imagem e uma ideia abstrata são realidades distintas. Quando pensamos em um cachorro, sucedem dois processos mentais: imagina-se um animal de certo tamanho, talvez um Pastor Alemão e evoca-se na mente o conceito de cão. E é óbvio que estas duas coisas são diferentes, pois quando nos perguntam se um “Pinscher” é também um cachorro, respondemos indiscutivelmente que sim.
Agora, se o conceito de cão fosse a mesma coisa que a imagem evocada inicialmente, não se poderia saber que o Pinscher também é um cachorro. Não inferimos isso só porque comparamos uma grande quantidade de imagens armazenadas em nossa memória e lá encontramos a lembrança de um Pinscher e a de um Pastor Alemão.
Um conceito geral ou universal faz mais que isso; ele colhe a essência das coisas abstraindo-a das características materiais que encontramos nos indivíduos concretos.
Tomemos o conceito de triângulo: “figura de três lados”. Ele é aplicável a todos os triângulos possíveis, independentemente de minha experiência concreta.
Potencialmente é infinita a variedade de triângulos particulares que podem existir. Agora, se meu conhecimento se reduzisse aos dados colhidos das experiências particulares, eu nunca poderia dizer com certeza que todos os triângulos são figuras de três lados, pois minha experiência é sempre de um número limitado de triângulos concretos.
Em certo sentido, conhecendo as coisas através de sua essência, eu as conheço desde o infinito ou ilimitado. Mas a matéria é sempre finita e determinada de alguma forma, especialmente pelas dimensões quantitativas.
A consequência disso é que os conceitos não são coisas físicas. Mas se formarmos e considerarmos ideias com o nosso intelecto, o intelecto mesmo não pode ser uma capacidade pertencente a uma coisa meramente física e material. Logo, o conhecimento abstrato exige um causa que não dependa da matéria para a realização de seu ato próprio.
As coisas físicas podem atuar sobre outras coisas físicas, quer conferindo-lhes novos acidentes, quer fazendo com que sejam outras substâncias, como quando uma faísca provoca a formação de água a partir do hidrogénio e do oxigénio.
Mas uma coisa física não pode agir sobre outra coisa física e assim transformá-la em algo não físico. Isso porque há sempre alguma matéria subjacente envolvida em mudanças físicas que persistem ao longo de toda a mudança.
Portanto, nem o cérebro nem qualquer parte do corpo pode produzir uma ideia abstrata ou não física. Isso mostra que nosso intelecto, como causa produtora das ideias gerais, deve ser imaterial e que a singularidade das IAs não passa de uma falsa esperança.
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