Apresentação do livro de Mário Casotti
O presente livro “O método educativo de Dom Bosco” é, na realidade, a introdução que Mario Casotti fez da obra “O Método preventivo” de São João Bosco.[1] Não obstante, podemos com muito proveito tomar essa introdução como um livro em si, pois o autor imprime nela duas qualidades suas que são necessárias para compreensão e para a transmissão dos contornos essenciais da pedagogia cristã cristalizada no carisma de São João Bosco: um conhecimento profundo da fé (Casotti era um católico convertido com uma elevada formação, inclusive teológica) e das doutrinas pedagógicas do passado como também as de seu tempo (por mais de vinte anos foi catedrático de pedagogia da Universidade Católica do Sagrado Coração em Milão).
Da mesma forma que a história da filosofia considerou o “Discurso sobre o método” de Descartes uma obra independente, embora tenha sido originalmente publicada como um prólogo de três ensaios filosóficos, assim também, na história da pedagogia, o presente texto de Casotti se mantém de pé com suas próprias forças por ser um verdadeiro compêndio dos princípios basilares da educação católica.
Antes de mais nada, é preciso alertar o leitor que o “Método Preventivo” de Dom Bosco – e o comentário que Casotti fez dele – se desenvolvem levando em conta uma modalidade de instituição educativa hoje praticamente inexistente: as escolas católicas em regime de internato. Por isso, aparecerão ao longo do texto alguns exemplos ou atividades que hoje soam estranhas aos nossos ouvidos contemporâneos: passeios e atividades recreativas com os educadores, uma leitura dirigida ou exame de consciência antes de dormir, missa e confissões antes das aulas, etc. Cabe ao leitor, mais que atentar-se a esses detalhes circunstanciais, enxergar através deles o espírito que dá vida a essas indicações e adaptá-las às nossas circunstâncias de hoje.
Com essa observação em mente, estamos em condições de contextualizar brevemente o conteúdo do livro. Já na introdução, Casotti faz alusão às possíveis relações do pensamento pedagógico de Dom Bosco com outros autores e teorias de seu tempo juntamente com o fato de o Santo, aparentemente, não mencionar suas possíveis fontes. Pode-se dizer que, no ambiente geral da época, havia um anseio por uma renovação geral do sistema pedagógico até então assentado sob uma base punitiva.
Apesar desse anseio geral, Dom Bosco percebeu que a prática pedagógica diária continuava ainda nos antigos moldes. O mérito inegável do santo piemontês está na realização bem-sucedida de uma visão não punitiva da educação que até hoje dá seus frutos. Os capítulos que seguem serão uma exposição dos fatores que permitiram tal sucesso: uma educação que visa a redenção com um método inspirado na caridade evangélica, proativa, pautada na harmonia entre fé e razão e que busca aproveitar com prudência o que há de humanamente válido fora do cristianismo.
Assim sendo, Casotti frisa o principal ponto de encontro entre Dom Bosco e os pedagogos de seu tempo: a educação como um sistema preventivo e não punitivo. Comparando o sistema preventivo com a saúde do corpo, a educação há de ser vista como a higiene diária: antes de um amargo remédio, é preciso cultivar e cuidar a higiene moral da alma. Esse princípio é levado de tal forma a sério que Dom Bosco – diante de um aluno irremediavelmente fechado e incorrigível pela via positiva – afirma ser preferível ter um estudante a menos em sua instituição, enviando-o para casa de seus pais, que utilizar uma via repressiva.
Por outro lado, excetuando tais casos extremos, as exortações e as medidas corretivas não eram totalmente excluídas da dinâmica educativa. Mas isso deveria ser feito sempre em particular, sem punições físicas e humilhantes. Como os remédios que, no plano fisiológico, devem ser a exceção, a prática comum há de ser o cuidado preventivo, pois o castigo como único expediente pedagógico termina por causar uma atitude de rejeição e de amargura nos jovens.
Uma vez determinado o que não deve ser um castigo na esfera pedagógica e quais seriam os critérios gerais de aplicação daquelas medidas punitivas aceitáveis, Casotti aborda os critérios concretos para a prática dessas correções, confrontando dois autores: Rousseau e Locke. O primeiro, fortemente influenciado pela filosofia mecanicista e materialista da física moderna, acha que – para evitar a atitude negativa que as punições causam – seria preciso focar no que chama de consequências naturais. Visto como uma máquina, o ser humano estaria plenamente sujeito às leis da física, da ação e reação. Sob essa perspectiva, o educando deveria ser deixado livre para que as consequências naturais de seus erros o eduquem; qualquer intervenção da vontade que mediasse o vínculo entre ação e consequência seria vista como algo negativo.
Locke, por outro lado, vê um excessivo racionalismo na pedagogia de Rousseau. Nossas ações não têm somente consequências físicas, mas também morais e estas são tão reais quanto aquelas. Para ele, o conceito de “consequências naturais” não deve excluir o papel da vontade. Ademais, o educador deve ter uma presença ativa para a aplicação justa das medidas corretivas. Para Casotti, a pedagogia de Dom Bosco está inserida nessa tradição que vê na educação um trabalho proativo de direcionamento simultâneo da inteligência e da vontade do educando.
Há, no entanto, uma diferença de fundo entre as abordagens preventivas das pedagogias modernas e a de Dom Bosco. A abolição dos castigos, especialmente físicos, parece ainda estar ligada àquela ideia de Rousseau sobre a bondade natural do ser humano. Dada a impecabilidade da criança, ela nunca cometeria faltas, mas só imperfeições a serem corrigidas. As motivações que tornam original a pedagogia de Dom Bosco são bem diferentes. Ela se baseia na objetiva condição da miséria e debilidade da natureza humana que, auxiliada pela graça, recebe de Cristo o chamado à conversão, à mudança de vida. Um chamado que exorta, mas não obriga; deixa espaço para que a liberdade responda no seu tempo, motivada por uma verdadeira conversão do coração e não por uma imposição externa.
Não estamos diante uma pedagogia otimista ingênua, mas fundada em um realismo antropológico e teológico que considera o homem em sua integralidade horizontal e vertical; horizontal porque leva em conta todos os aspectos do ser natural: sensibilidade, inteligência, vontade, afetos etc. Vertical porque esse mesmo homem também tem uma dimensão que olha para cima, para o sobrenatural: uma pedagogia que integra fé e razão unidas pelo amor.
É a atitude amorosa que constitui o cerne metodológico de Dom Bosco. Tal atitude tem como paradigma o próprio Cristo no encontro com a Samaritana: não a repreende como alguém superior que simplesmente expõe seus erros, mas sim como alguém que dá um voto de confiança nas suas capacidades conversando, se interessando pela pessoa, estimulando suas forças e o desejo de superação.
O foco do método preventivo não está no pecado. Este é um elemento secundário que obstaculiza o que sim é importante: o crescimento e a superação. Temos em Dom Bosco sobretudo uma pedagogia do chamado a uma missão e, condicionado a este primeiro objetivo, uma pedagogia corretiva. Para alcançar tal meta, é preciso ter um sincero amor ao próximo: eis aqui o primeiro elemento da educação.
O amor fará com que o formador ou educador se nutra de um verdadeiro interesse pelo bem do educando que o levará a conhecer e participar dos seus gostos e interesses. Disso surge um aspecto característico da pedagogia de Dom Bosco que é a participação ativa do educador nos momentos de recreação do educando. Tais atividades favorecerão o surgimento de laços que vão além das meras relações formais de ensino, fazendo com que o aluno perceba na prática o real interesse do educador pelo seu bem integral. Dessa forma, os alunos também responderão se interessando pelas coisas de seu professor ou educador, encontrando no mestre um verdadeiro companheiro.
As atividades lúdicas mais favorecidas por Dom Bosco eram as de índole coletiva que, por sua própria natureza colaborativa, incluem uma dimensão pedagógica. As principais atividades recomendadas pelo santo eram: passeios ao ar livre, preferencialmente em meio à natureza, ginástica, música, declamação, teatro. A conjugação harmoniosa dessas atividades representa ao mesmo tempo uma válvula de escape para as energias do jovem e uma preparação para as atividades mais estritamente acadêmicas.
Outro aspecto da educação preventiva é a vigilância que deve ser uma consequência da participação recreativa do educador. Com a confiança adquirida nessa relação mútua, o educador estará, de fato, mais presente na vida dos jovens e seu trabalho não se reduzirá a “apagar incêndios” e distribuir punições por condutas incorretas, mas impedir que elas aconteçam com sua presença cordial. Daí que, na visão de Dom Bosco, o educador deve sê-lo integralmente; seu papel não se reduz às formalidades de uma sala de aula, pois seu objetivo é a formação da pessoa como um todo.
O método preventivo é também um ótimo remédio contra a rotina na vida de oração. Ou seja, realizar os atos de piedade simplesmente sob o “efeito manada” e sem convicção. Nesse quesito, Dom Bosco também promovia a simplicidade e o respeito à individualidade de cada pessoa. Por exemplo, não exigia em seus colégios que, durante a missa, os alunos saíssem ordenadamente a comungar. Estimulava, ao contrário, a “santa desordem”: cada um deveria sair para a comunhão espontaneamente, sem uma ordem pré-estabelecida. Assim não seria constrangedor o fato de alguém não se aproximar da eucaristia. Caso ficasse evidente a ausência prolongada dos sacramentos por parte de algum aluno, o formador deveria estimular a confissão frequente e interessar-se pela pessoa, mas sem violar ou forçar sua consciência.
Além disso, Dom Bosco fomentava uma atividade mais dinâmica voltada a práticas de piedade que hoje poderíamos chamar de “espírito de equipe”. Os alunos se dividiam em pequenos grupos denominados “Sociedades da Alegria” às quais eram assignadas responsabilidades de pequenas práticas espontâneas de piedade. Por exemplo, um grupo ou equipe poderia assumir um compromisso de fazer determinadas visitas eucarísticas por uma intenção específica; colocar especial esforço na pontualidade às atividades por amor a Deus; prontificar-se para servir os demais durante um lanche especial, etc. Outra prática ligada à vida espiritual era a “boa noite”, isto é, uma leitura antes de dormir que estimulasse o exame de consciência: pode ser uma leitura moral, uma história com conteúdo de valor, uma reflexão sobre os acontecimentos do dia, etc.
O último capítulo encerra com algumas reflexões e orientações práticas sobre a didática de Dom Bosco. Como temos visto, o método preventivo implica a exclusão de toda forma de violência das atividades educativas. Disso brota um ensino pautado nos reais interesses psicológicos do aluno. É uma educação, portanto, que leva em conta a liberdade da pessoa buscando mapear e, posteriormente, desenvolver suas potencialidades. Uma liberdade que não se iguala à libertinagem, mas que se exercita na disciplina, na luta pela conquista das virtudes e na graça: “ama e faz o que quiseres”[2].
Dentro dessa didática orientada pelos interesses do estudante, havia algumas disciplinas básicas ou comuns que o santo considera importantes para a formação de todos. Casotti destaca o estudo dos clássicos, da história e do estilo na escrita. Os autores pré-cristãos ou pagãos não devem ser descartados a priori. Contudo, seu estudo deve ser feito com prudência dando preferência para aqueles mais alinhados com as verdades do cristianismo. Uma ferramenta para facilitar essa tarefa é oferecer aos alunos textos já selecionados e reunidos em antologias.
Outra disciplina importante era a história. A indicação de Dom Bosco é que essa disciplina – muitas vezes manipulada para danificar a fé – seja ministrada de tal forma que se estude a história eclesiástica junto com a história geral. A história não se configura somente como um conjunto de fatos; ela deve ser vista sob o prisma da fé e da providência.
Por último, Casotti nos reporta o interesse de Dom Bosco no exercício da escrita e do estilo. Fazia isso por meio da redação epistolar: os estudantes, dentro de uma frequência estabelecida, escreviam para seus pais. Essas cartas deveriam conter a descrição das atividades, da escola, da cidade, etc. Em definitiva, um diário em forma de carta.
Para encerrar esta apresentação, deixamos aqui duas observações finais. Ao longo do livro, o leitor perceberá que o método preventivo de Dom Bosco é uma proposta pedagógica muito concreta. O próprio santo recusava o título de pedagogo; tampouco nos brindou uma teoria ou tratado pedagógico enquanto tal. Seu olhar sempre foi prático e vivencial. Por isso nos pareceu por bem incluir como apêndice da edição brasileira a carta encíclica “Divinis illius magristri” do Papa Pio XI sobre a educação cristã da juventude. Nessa encíclica temos um texto mais doutrinal que servirá como fundamento teórico das práticas pedagógicas de São João Bosco.
A segunda e última observação diz respeito ao contexto histórico do texto. Casotti menciona vários autores e figuras importantes da época que, na sua maioria, são pouco conhecidas nos dias de hoje, especialmente fora da Itália. Num esforço contextualização, incluímos no texto alguns comentários explicativos que foram integrados às notas de rodapé originais do autor.
Em geral, esperamos que este livro possa ser um fermento de renovação para a pedagogia no Brasil; uma alternativa às teorias pedagógicas materialistas e imanentistas hoje imperantes em nosso sistema educacional. Em particular, fazemos votos para que o presente livro seja útil a todos aqueles interessados em conhecer as práticas e os princípios de uma autêntica pedagogia católica. Prof. Ivo Fernando da Costa
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