Diante de um problema, a primeira atitude que se impõe é compreender sua natureza. Isso implica conhecer, com a maior exatidão possível, as suas causas, o assunto em questão, as circunstâncias envolvidas e suas implicações. Somente a partir desse conhecimento será possível refletir sobre soluções viáveis.
Um instrumento valioso nesse processo é a investigação da origem histórica do problema, pois compreender como e por que ele surgiu pode revelar aspectos essenciais para sua resolução. É por essa razão que, em meio ao caos de nossos dias, é frequente a indagação acerca de quem, ou de qual movimento filosófico, deve-se atribuir a responsabilidade pelo estado atual das coisas.
São inúmeras as correntes filosóficas e os personagens históricos que poderiam ser apontados como responsáveis: cientificismo, racionalismo, ateísmo, materialismo, nominalismo, entre outros. Contudo, o que observamos é menos a ação isolada de um único culpado e mais um longo processo de degradação. Essa complexidade torna difícil atribuir a responsabilidade a um único agente. Ainda assim, esse processo apresenta alguns pontos nodais, marcados por figuras e eventos específicos. Um desses pontos, sem dúvida, é a ruptura da harmonia entre fé e razão.
Como um de seus requisitos necessários, essa harmonia exige uma delimitação precisa do objeto, do escopo e dos limites daquilo que é matéria de fé e de razão. Nesse aspecto, Santo Tomás de Aquino era contundente. Ele advertia contra o erro de se atribuir à razão aquilo que é estritamente matéria de fé, pois tal confusão pode levar à fé a ser ridicularizada pelos incrédulos.(1) Do mesmo modo, devemos evitar o erro oposto: o fideísmo que termina por esvaziar o potencial da razão indo contra alquilo que a própria Escritura nos exorta:
“Estai sempre prontos a dar razão da esperança que há em vós” (1Pe 3,15).
É com essa atitude que Santo Tomás encara a questão filosófica de Deus: podemos saber que Ele existe por meio de Seus efeitos — as criaturas —, mas não podemos conhecer exatamente o que Ele é em Sua essência(2).
E o que tudo isso tem a ver com a chamada “crise da modernidade”? Uma pista valiosa nos é fornecida por Pierre Duhem em sua obra Le Système du Monde. Nela, o autor afirma que, se tivéssemos de fixar uma data para o início da modernidade, ela seria o dia 7 de março de 1277.(3)
Mas por que uma data tão distante dos aclamados "heróis da modernidade" como Bacon, Galileu, Descartes, Locke e outros atuantes nos séculos XVI e XVII? A resposta está na canetada de um bispo: Étienne Tempier. Ele, por meio de uma lista de 219 proposições condenadas nessa data, procurou encerrar as tensões entre as faculdades de Artes e de Teologia na Universidade de Paris.
A recepção dos textos de Aristóteles no Ocidente medieval, como se sabe, não foi pacífica. Houve muitas reticências e dúvidas quanto à compatibilidade do pensamento do Filósofo com as verdades da fé, especialmente devido às interpretações árabes do Corpus Aristotelicum.(4) Boa parte do projeto teológico e filosófico de Santo Tomás de Aquino foi precisamente demonstrar essa compatibilidade, bem como a utilidade da razão aristotélica na articulação e no aprofundamento das verdades da fé.
No entanto, o esforço de Santo Tomás de Aquino não foi suficiente para apaziguar essas tensões, culminando nas famosas Condenações de Paris, que marcaram o início do declínio da filosofia medieval.(5) Entre as teses condenadas por Tempier, gostaria de destacar a de número 215, que afirma: “Que Deus não pode ser conhecido, senão que Ele existe ou Seu próprio existir” (condenado).(6) Foi uma proposição que poderia ser atribuída à teologia negativa de Santo Tomás.
No seu conjunto, as Condenações exteriorizaram uma invasão da teologia naquilo que a razão pode com propriedade dizer sobre Deus, sobre o mundo e sobre o homem. Na prática, Étienne Tempier traçou as balizas para o desenvolvimento de novos sistemas metafísicos que, livres dos condicionamentos aristotélicos, abriram caminho para a modernidade.
Dentre os novos arranjos metafísicos que emergiram, destaca-se o de Beato Duns Escoto. Buscando resolver o problema de uma suposta exagerada transcendência divina, ele propôs a univocidade do ser como condição de possibilidade para uma teologia positiva. Essa abordagem permitiria não apenas conhecer a existência de Deus, mas também sua essência, pois, sob a mesma noção de “ente”, se encontram Deus e a criatura!
Contudo, de forma irônica, essa proposta acabou por promover a superioridade da ontologia sobre a teologia, instaurando uma espécie de racionalismo. Ao enquadrar a transcendência divina dentro das categorias de uma ontologia essencialista, Escoto reduziu a radical alteridade de Deus, aproximando-O dos moldes de compreensão próprios à criatura.(7)
Não foi algo trivial. A influência da ontoteologia de Escoto foi forte e duradoura. Três séculos mais tarde, Francisco Suárez, em sua reflexão sobre o objeto da metafísica, formulava uma análise que ecoava os princípios escotistas:
"Ao conceito formal de ser corresponde um só conceito objetivo, adequado e imediato, que não significa expressamente nem substância, nem acidente, nem Deus, nem criatura, mas abrange todas essas coisas como se fossem uma só, a saber, enquanto são, de algum modo, semelhantes entre si e convergem no ser."(8)
Essa formulação suareziana evidencia como a univocidade do ser, inicialmente proposta por Escoto, permaneceu como um eixo organizador do pensamento metafísico, reconfigurando as relações entre ontologia e teologia. No entanto, sua influência não se limitou ao século XVI, época em que viveu Suárez. Ela se estendeu a pensadores fundamentais da modernidade, como Descartes, Espinosa, Leibniz, Wolff, Kant e Hegel.(9) Essa continuidade é confirmada pelo próprio Heidegger, que, em Ser e Tempo, afirma:
“Em sua cunhagem escolástica, o essencial da ontologia grega se transpôs, através das Disputationes Metaphysicae de Suárez, para a metafísica e a filosofia transcendental da Idade Moderna, chegando ainda a determinar os fundamentos e objetivos da Lógica de Hegel.”(10)
Assim, a ontoteologia escotista, consolidada e difundida por Suárez, tornou-se uma ponte decisiva entre a metafísica medieval e os sistemas filosóficos da modernidade, moldando de forma duradoura os fundamentos do pensamento ocidental.
Não sem razão Escoto é apelidado de o Kant da Idade Média!
REFERÊNCIAS:
(1) Cf. TOMÁS DE AQUINO. De Aeternitate Mundi. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 1996.
(2) SANTO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I, 3, prol.
(3) DUHEM, Pierre. Le Système du Monde: Histoire des Doctrines Cosmologiques de Platon a Copernic. 2 ed. Paris: Hermann, 1973, p. 66.
(4) DE BONI, L. A. A Entrada de Aristóteles no Ocidente Medieval. Dissertatio, v. 1, n. 1, p. 65–106, 1995.
(5) Cf. HISSETTE, R. Enquête sur les 219 articles condamnés à Paris le 7 mars 1277. Louvain Paris: Publications universitaires Vander-Oyez, 1977.
(6) DENIFLE, H. Chartularium Universitatis Parisiensis. Parisii: Fratrum Delalain, 1989. v. I
(7) GILSON, ÉTIENNE. Juan Duns Escoto introducción a sus posiciones fundamentales. Pamplona: EUNSA, 2007.
(8) SUÁREZ, Disputationes Metaphysicae, II, 2, 8.
(9) PRIETO LÓPEZ, L. Suárez y el destino de la metafísica: de Avicena a Heidegger. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2013.
(10) HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 50
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