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  • Ivo Fernando da Costa

Os pilares da filosofia perene


Escola de Atenas - Rafael Sanzio

Introdução


São João Paulo II, em sua encíclica “Fides et Ratio”, nos alerta contra o perigo do historicismo, isto é, a tendência contemporânea de encerrar ou condicionar uma verdade filosófica ao período histórico que ela foi evidenciada, questionando, ao menos de forma implícita, a sua validade permanente. O que era considerado verdade em determinado período, segundo o historicista, não seria mais verdade em outro momento.


As circunstâncias históricas e culturais certamente jogam um papel importante em nossa apreciação da realidade. Isso, contudo, não significa negar a capacidade da razão para se elevar sobre as conjunturas de tempos e lugares acessando, assim, uma verdade objetiva sobre as coisas. Para nos resguardar desse equívoco, é preciso recuperar:


“a tradição perene daquela filosofia que, pela sua real sabedoria, conseguiu superar as fronteiras do espaço e do tempo”[1].

Apesar das divergências entre as diversas correntes de pensamento, a filosofia ao longo dos séculos, com distintos graus de precisão e sistematicidade, foi nos legando um conjunto de verdades fundamentais sobre o homem, sobre o mundo e sobre Deus. Esse corpo de conhecimentos filosóficos, de validade permanente – herdado em grande medida dos autores antigos e medievais – é o que se entende por “Filosofia Perene”. São como os alicerces sobre os quais se constrói toda sã filosofia.


Diante do ceticismo radical, que é em si mesmo contraditório, não resulta difícil compreender a necessidade da existência de um conjunto essencial de verdades que norteiem nosso pensar e atuar. O cético, ao afirmar categoricamente que não existe verdade ou que toda afirmação está condicionada às suas circunstâncias, já está assumindo aquilo que ele mesmo nega: “é verdade que não existe verdade” ou que “é verdade que o momento histórico condiciona nosso pensar”.


O problema reside em localizar e evidenciar estas verdades. Minha proposta aqui consiste em oferecer um esboço (sem pretenções de esgotar o tema) dos pilares fundamentais dessa sabedoria perene em três grandes campos: 1) o ser na mente ou o conhecimento; 2) o ser fora da mente ou que transcende a mente, ou seja, o mundo; 3) finalmente, falarei algo sobre Deus como o ser que está fora do mundo ou que transcende o mundo.

1) O ser na mente: o conhecimento


Em primeiro lugar, é preciso nos perguntar o que é o ser na mente ou o conhecimento. Antes de mais nada o conhecimento é uma relação entre um sujeito que conhece e um objeto conhecido. O que caracteriza tal relação é o fato de ela não poder ser reduzida a uma interação meramente física ou material. Em outros termos, o conhecimento, além da interação física que se dá nos estágios iniciais da percepção sensível, possui um caráter não-físico ou intencional.


Façamos um exercício mental a fim de ilustrar essa ideia de intencionalidade que especifica a relação de conhecimento. Imaginemos duas pedras quentes. Coloquemos uma delas sobre uma terceira pedra fria e, a outra, seguremos com a nossa mão. Nessa situação, temos uma troca física de temperatura tanto entre a pedra quente e a pedra fria quanto entre a outra pedra quente e minha mão que também se aquece. Em ambos casos, temos uma transmissão física de calor: da pedra quente para a fria assim como da outra pedra quente para a mão.


Aparentemente temos a mesma dinâmica entre as relações “pedra-pedra” e “pedra-mão”. Não obstante, uma apreciação mais atenta nos revela uma diferença fundamental: quando afastamos a pedra quente da outra pedra, esta deixará de receber a influência do calor e retornará à temperatura ambiente. O ser quente da pedra ou, como os escolásticos se referiam, a forma do calor deixará de existir na pedra que se ajustará à temperatura ambiente inicial. Em um primeiro momento, é isso que ocorre também com a mão que retornará à sua temperatura natural.


Contudo, depois de todo este processo, isto é, de afastamento e resfriamento, algo permanece na relação de conhecimento. O sujeito cognoscente, depois desta experiência, ainda retém a experiência da sensação do calor. Nele permanece ainda, sem as notas físicas, a impressão do que foi “sentir o calor”. No caso do ser humano, preservamos em nosso intelecto a ideia do calor. É essa posse intencional que caracteriza ou delimita concretamente uma experiência cognitiva: ela implica certo grau de desmaterialização do objeto conhecido que pode já não estar mais presente fisicamente comigo.


O conhecimento não pode ser uma absorção física e meramente passiva do objeto conhecido, caso contrário ele seria equivalente a uma pedra que transmite fisicamente o calor para outra pedra. Ele implica um processo de desmaterialização que os filósofos da escolástica chamam de abstração; isto é, um ato mental que extrai da daquele objeto físico uma imagem sensível, uma ideia, uma noção ou um conceito. Neste processo cognitivo, é preciso distinguir dois elementos fundamentais: o ato mental que processa os estímulos advindos do mundo externo e o resultado dessa ação que é o conteúdo daquilo que conhecemos.


A mente, de modo imediato está voltada para fora, em outros termos, o que conhecemos primariamente é o conteúdo da coisa externa conhecida. Somente por um ato de reflexão podemos nos voltar sobre os nossos próprios atos mentais que processam a informação externa. Isso significa que a coisa externa e o conteúdo que dela extraímos é, ao mesmo tempo, aquilo que informa nossas faculdades cognitivas e o fim ao qual tende o próprio ato de conhecer. É esse o significado do termo técnico “intencionalidade” que especifica a relação de conhecimento: Um ato mental desencadeado pelos estímulos de um objeto externo que, por um processo de desmaterialização, resulta em uma representação cognitiva cuja finalidade é colocar o sujeito primariamente em contato com a realidade externa por meio de sua assimilação suprafísica.


A representação ou conceito que resulta do ato mental é um signo natural que remete diretamente ao mundo externo. Para melhor compreender essa ideia, analisemos a dinâmica de um signo artificial como, por exemplo, uma placa de trânsito “Pare”. Ela possui uns elementos materiais particulares, uma certa altura, uns componentes, uma figura geométrica hexagonal pintada de vermelho com a letra "P". Contudo, quando nos deparamos com uma placa de trânsito assim descrita, não nos fixamos nesses traços particulares, mas no seu significado que nos impele a realizar uma certa ação, no caso, parar e observar se as condições para avançar o veículo são favoráveis.


Certamente que posso voltar minha atenção para as características materiais da placa, mas não é isso que faz um signo ser tal e sim o remeter a algo (o significado) que está além daquilo que é o significante (a placa ou signo). Isso também ocorre de modo análogo com os conceitos ou representações mentais e seus constituintes materiais. O objeto imediato de nosso conhecimento não são as representações mentais, nem mesmo seus constituintes materiais (as descargas elétricas dos neurônios ou as suas sinapses mentais), mas sim aquilo que ele remete: a coisa externa. A diferença é que o conceito é um signo natural em que o vínculo entre significante e significado se estabelece pelo próprio ato mental enquanto, nos signos artificiais, este vinculo é convencional.


Com base nisso, podemos compreender um outro ponto importante da filosofia perene: a noção de verdade. Quando afirmamos que algo é verdade, estamos implicitamente querendo dizer que aquilo que penso corresponde de fato àquilo que está fora na realidade. Isso só é possível porque no ato cognitivo verdadeiro se dá uma relação de adequação por meio do qual o intelecto é modificado por meio da ação da coisa externa ao mesmo tempo o objeto externo conhecido também é modificado (desmaterializado) a fim de poder ser assimilado intencionalmente pelo intelecto. Em suma, a verdade é a adequação da coisa e do intelecto (adaequatio rei et intelectus) mediante a qual afirmamos que algo de fato é aquilo que é, ou afirmamos não ser aquilo que de fato não é.

2) O ser fora da mente: o mundo

Essa inclinação ou tendência de nosso intelecto que o direciona em direção ao conhecimento verdadeiro da realidade externa é um reflexo da presença de uma grande intencionalidade física na natureza como um todo. É o que na escolástica se denominava como teleologia: todas coisas possuem tendências ou inclinações naturais que as orientam a determinado fim ou propósito. Assim como a vista tem a finalidade de ver as coisas; da mesma forma, uma semente tende a se desenvolver e se tornar um uma árvore; ela não tende a se transformar em um cachorro.


Definimos e compreendemos a realidade em função de sua finalidade. Isso é assim porque a própria realidade inclui de maneira objetiva uma finalidade verdadeira. A ideia de propósito, fim ou "telos" não é uma mera apreciação subjetiva de nossas faculdades cognitivas, mas possui um fundamento real nas próprias tendências que observamos no mundo físico. A própria ciência perderia sentido se não tivéssemos a expectativa de que a natureza atua sempre ou na maior parte das vezes de uma determinada maneira.


A noção de propósito ou causa final é um conceito essencial para compreendermos o mundo. Como é que eu vou compreender o coração se não entendo que ele é um órgão cuja finalidade é bombear o sangue ou que a vista está feita para ver? Resulta, porém, que finalidade não é a única causa necessária para compreendermos as coisas. Ela é a mais importante, mas não é a única. Existem outras 3: a causa formal, ou seja, a essência das coisas; a causa eficiente e a causa material.


Para compreender melhor o que são estas causas e a interação entre elas, vou dar um exemplo bem corriqueiro: imaginemos um bolo de aniversário. O bolo foi feito para quê? Seu fim ou "telos" foi comemorar um aniversário. A causa formal ou a essência do bolo é a sua receita. Podemos ter vários bolos de chocolate (indivíduos distintos) que possuem em comum uma mesma essência ou receita assim como vários homens (Sócrates, Platão, Aristóteles) têm em comum a humanidade. A causa eficiente do bolo é o confeiteiro que mistura na justa medida os seus ingredientes (causa material).

Para termos uma compreensão completa das coisas do mundo, é preciso ter diante dos olhos essas 4 modalidades de causa. Um aspecto fundamental da sabedoria perene consiste na defesa de que a realidade não se reduz simplesmente às causas materiais e eficientes (átomos e movimento, por exemplo). Talvez estas duas causas sejam mais facilmente acessadas pelos nossos sentidos, mas isso não significa que, por isso, devemos negar que as coisas da realidade não possuem uma essência e uma finalidade congruente com dita essência. Isso só quer dizer que esses aspectos da realidade são apreendidos por algo que supera os sentidos: o nosso intelecto.


Por exemplo, posso com meus sentidos perceber uma infinidade de triângulos distintos (retos, isósceles, escalenos... com as mais variadas proporções de tamanho, medidas angulares e cores). No entanto, com a luz de nossa razão podemos inteligir, isto é, “ler dentro” (intus + legere) de cada triângulo algo real que é necessariamente verdadeiro em todos eles, inclusive os que ultrapassam o escopo de minha capacidade perceptiva (os triângulos que não existem mais e os que virão a existir): em qualquer triângulo individual, a soma interna de seus ângulos é 180 graus! É uma experiência que todo aluno, estudando geometria, faz. Em determinado momento, refletindo sobre a matéria, sua mente é como que inundada por uma luz intelectual pela qual ele afirma: “entendi!” Uma luz intelectual que nos revela uma espécie de quarta dimensão do real; uma dimensão mais profunda e verdadeira da realidade por estar ligada intimamente à essência da coisa.


As coisas do mundo possuem uma essência e sua finalidade está ligada a esta essência. Um gato não pode incluir entre suas tendências naturais a capacidade de voar, pois isso não se configura como um traço característico de sua essência; igualmente, numa geometria euclidiana, um triângulo não pode ter como soma de seus ângulos internos um valor maior ou menor que 180 graus. Isso parece ser algo um tanto quanto banal, mas negar que as coisas possuem uma essência e uma finalidade real, nos levará a uma concepção niilista do homem e, em última análise, a uma negação da possibilidade mesma da ciência. Se não há uma finalidade ou tendência natural nas coisas, não poderemos nos fiar das regularidades da natureza para descrever com segurança os fenômenos. Se as coisas não possuem uma essência, ou seja, uma modo determinado de ser, é vão qualquer esforço no sentido de buscar descrever as coisas do mundo observável.


Concretamente sobre o tema da essência, a sabedoria ou filosofia perene distingue entre objetos naturais e artificiais. Os objetos ou entes naturais são aqueles que possuem intrinsicamente uma essência real. Já os artefatos possuem uma essência que lhes é imposta desde fora. No artefato, o todo é o resultado da soma de suas partes articuladas ordenadamente em vista de um fim, sendo sua essência redutível à essências de suas partes componentes. Tomemos, como exemplo, um relógio. Ele é um objeto com uma essência artificial dotado de uma série de partes ordenadas para servir à finalidade de marcar as horas. Por outro lado, um gato possui uma essência que lhe é intrínseca. Por isso ele possui uma unidade verdadeira e seu ser não se reduz ao ser de suas partes constituintes.


A essência não é só o que descreve os contornos e o modo de ser de um determinado ente; ela também dita o modo de atuar das coisas. Conforme afirmavam os escolásticos medievais: o agir procede do ser (agere sequitur esse). Um cachorro vai latir para uma estranho e abanar o rabo para seu dono, isto é, ele vai atuar em conformidade com seu “ser cachorro” e não conforme ao ser de um passarinho.


Um último ponto sobre o ser das coisas fora da mente é o conceito de analogia. Todas as coisas se dizem “entes”. Contudo, isso não significa negar ou anular a variedade ou distinção real entre os diversos entes. Portanto nem tudo se diz ente no mesmo sentido. Em outras palavras, ente é uma noção que possui vários significados ou sentidos. Uma coisa é o ser do gato que existe de forma autônoma em si mesmo e outra coisa o ser branco do gato. Não vemos a “brancura” andando por ai, mas o “gato branco”, a “parede branca”, etc.


Foi Aristóteles, no livro da metafísica, quem abordou de maneira explícita e sistemática o problema do significado do termo ente. Diante dessa questão, temos três possibilidades: a diversidade das coisas é tão radical que terminamos em uma fragmentação do real que inviabilizaria todo e qualquer conhecimento certo e universal. Conforme esta posição o termo ente não possuiria qualquer base comum sendo aplicado em sentidos distintos para distintas coisas. A posição oposta (predicação unívoca) anularia a distinção e a diversidade real das coisas: o ente possuiria um significado exatamente igual em todas as circunstâncias assim como o termo animal se diz igualmente do homem e do cavalo. Nesse caso estaríamos indo contra a evidência dos sentidos que nos atestam a variedade das coisas do mundo. A terceira possibilidade, acolhida por Aristóteles, é que a noção de ente possui um significado em parte igual e em parte distinto, ou seja, ele possui um sentido análogo.


O exemplo clássico é o da predicação do conceito de “saudável”. Muitas coisas podem ser ditas “saudáveis”, por exemplo, um corpo saudável, uma fruta saudável, um semblante saudável, etc. Nessas diversas atribuições do termo saudável, uma é a principal e as demais derivadas por algum vínculo de dependência com relação à primeira. Propriamente falando, o corpo é saudável; as demais coisas são ditas também saudáveis por algum grau de dependência ou relação ao corpo. O semblante se diz saldável no sentido que é uma manifestação da saúde; a fruta se diz saudável porque favorece a manutenção do corpo saudável. No que diz respeito ao ente enquanto tal, a substância (aquilo que existe de modo autônomo, isto é, em si e não em outro) se diz propriamente “ente”, as demais coisas se dizem “entes” por referência à substância. Assim a cor branca do gato se diz ente porque ela inere ou está no gato; o miado do gato se diz ente, pois depende dele como um efeito de sua ação, etc.


É a partir dessas noções basilares de causalidade e analogia que podemos nos elevar ao conhecimento de do ser fora do mundo, isto é, Deus.


3) O Ser fora do mundo ou que transcende o mundo: Deus

Sobre o tema do Ser que transcende o mundo, temos basicamente três questões fundamentais: se Deus existe; se podemos conhecer sua essência ou natureza e o modo como Ele se relaciona com o mundo.


Santo Tomás de Aquino, no início da Suma (especialmente: I, q. 2, a. 2-3), aborda a questão da demonstração da existência de Deus. Em primeiro lugar, ele nos explica que tipo de demonstração ou argumentação podemos usar para provar a existência de Deus. Nesse sentido, distingue dois tipos básicos de argumentos: argumentos “propter quid” e argumentos “quia”. O primeiro grupo se caracteriza por um raciocínio que procede das causas ou premissas gerais para encontrar seus efeitos em proposições concretas. Por exemplo, P1: Todo homem é mortal; P2: Sócrates é um homem; C: Sócrates é mortal.


Não podemos usar este tipo de argumentação para demonstrar a existência de Deus, pois ele parte de uma descrição da essência ou propriedades necessárias de um determinado objeto. Logo, se tentamos aplicar esse tipo de argumento para demonstrar a existência de Deus, já estaríamos pressupondo que conhecemos de antemão quem é Deus, configurando dessa forma uma petição de princípio.


A segunda classe de argumento (quia) são os que procedem dos efeitos concretos visando alcançar suas causas. Partimos, portanto, de premissas observáveis, visando alcançar sua razão ou explicação. É uma dinâmica que se apoia no princípio de causalidade: todo efeito necessita de uma causa.


Feito isso, o Aquinate nos oferece suas famosas 5 Vias para demonstração da existência de Deus. Não me detenho nesse texto a explicar cada uma delas; simplesmente reproduzo aqui a 2ª Via que ilustra bem o que foi explicado no parágrafo anterior:


A segunda via procede da natureza da causa eficiente. Pois, descobrimos que há certa ordem das causas eficientes nos seres sensíveis; porém, não concebemos, nem é possível que uma coisa seja causa eficiente de si própria, pois seria anterior a si mesma; o que não pode ser. Mas, é impossível, nas causas eficientes, proceder-se até o infinito; pois, em todas as causas eficientes ordenadas, a primeira é causa da média e esta, da última, sejam as médias muitas ou uma só; e como, removida a causa, removido fica o efeito, se nas causas eficientes não houver primeira, não haverá média nem última. Procedendo-se ao infinito, não haverá primeira causa eficiente, nem efeito último, nem causas eficientes médias, o que evidentemente é falso. Logo, é necessário admitir uma causa eficiente primeira, à qual todos dão o nome de Deus.

Implícito em todas as demonstrações da existência de Deus está o fato da radical transcendência divina. Deus não se confunde com as criaturas. Ele é totalmente distinto delas e tampouco sua ação causal se equipara com a causalidade do ente criado. Todas os entes, quando exercem sua ação sobre outros são causas causadas. Deus não é assim, ele é a única causa não causada, o primeiro princípio de todas as coisas. Santo Tomás é consciente que este tipo de argumento só nos oferece a certeza da existência de uma causa primeira que nós a identificamos com Deus. Em outros termos, ele não nos oferece uma conhecimento da natureza ou essência divina. É aqui onde entra, junto com a ideia de causalidade, a noção de analogia.


Todo efeito, se assemelha a sua causa. Por exemplo, um livro é o resultado das reflexões de seu autor. Assim, quando leio um livro, posso dizer que conheço a mente de seu autor. Isso não significa que conhecerei integralmente todos os pensamentos do autor, no entanto não deixa de ser verdade que, depois da leitura – mesmo que de maneira limitada –, conheço seus pensamentos. De modo parecido, podemos conhecer algo de Deus a partir de seus efeitos que são as criaturas (Cf. Suma Teológica, I, q. 13). Ou seja, analogicamente, ou por comparação com as criaturas, podemos dizer algo sobre a essência divina: Deus é um, bom, verdadeiro, justo, etc.


Por fim, uma última ideia sobre a relação de Deus com o mundo. Na visão da filosofia perene, Deus não é como um relojoeiro que montou seu artefato, dando o pontapé ou movimento inicial, e depois se afastou. Por outro lado, não negamos que as criaturas possuam verdadeiros poderes causais; é um erro atribuir uma intervenção constante e direta de Deus na natureza. Contudo, também é equivocado pensar num Deus ausente. Essa afirmação não é simplesmente um pensamento piedoso, pois o próprio princípio de causalidade nos dá suporte para isso: todo efeito depende de sua causa e uma vez que cessa o influxo da ação causadora, cessa também o efeito.


Para melhor compreender dessa ideia, é necessário ter em mente a distinção entre essência e ser (ou existência). Tudo aquilo que está incluído na essência de um ente lhe é necessário. Por exemplo, está incluído na essência do triângulo a propriedade de que a soma interna de seus ângulos seja 180 graus. Por outro lado, tudo que não se inclui na essência de algo não é necessário e precisa ser causado por outro: não está incluído na essência do triângulo que ele seja vermelho ou amarelo. Por conseguinte, é preciso invocar a ação causal de um agente para explicar por que este triângulo é vermelho e não amarelo.


O mesmo ocorre com o ente e seu ser ou existência. O fato de o ente ser contingente, isto é, poder ou não existir, se explica porque seu ser não está incluído em sua essência. Se, de fato, temos diante de nós um ente contingente, é porque sua existência foi causada. Agora se a existência é justificada pela ação de uma causa distinta da mesma essência do ente, isso quer dizer que ela precisa constantemente ser sustentada pela ação de sua causa. Por isso, Deus não é um Criador preguiçoso e sim constantemente presente e providente.


***

[1] Cf. SÃO JOÃO PAULO II, Fides et Ratio, nn. 85-87.


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