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Ivo Fernando da Costa

O que esperar do conhecimento científico: ceticismo ou dogmatismo?



Física e química polonesa Marie Curie

Fora do âmbito acadêmico, encontramos dois posicionamentos contrastantes sobre a questão do grau de certeza que nos proporciona o conhecimento científico. Eles correspondem, grosso modo, a dois grupos de pessoas que têm seu ponto de encontro na área da comunicação: os profissionais da divulgação científica e os da grande mídia em geral.


No que diz respeito ao campo da divulgação científica, encontramos a atitude dogmática. Divulgadores entusiastas que ganham fama nas redes sociais apresentam a ciência como um saber absolutamente certo e inabalável, fundado na experiência. Aos seus ouvintes, nada mais se espera que acreditem na ciência. Em outras palavras, uma atitude de fé religiosa. Inclusive o divulgador científico está uma posição de fiel. Na maioria das vezes, quem faz este trabalho, não replicou em laboratório, de modo experimental, os conteúdos que promove; o faz com um ato de fé. No máximo, caso se trate de alguém com formação acadêmica, terá feito alguns experimentos muito localizados de sua área de especialização na graduação ou pós-graduação universitária.


Nesse contexto, os ícones da ciência (Newton, Einstein, Darwin... e tantos outros) são encarados como entidades quase sobre sobrenaturais, inalcançáveis e intocáveis. Esses arautos de uma ciência idealizada fazem não somente o papel de pregadores de uma fé, mas também o de sacerdotes de seus ídolos: Qualquer que ouse questionar alguns de seus postulados ou dogmas, incorre no crime de sacrilégio contra a ciência: “quem é você para levantar dúvidas ou inconsistências na teoria da relatividade, da evolução? Negacionista! Medieval! Obscurantista!


Essa postura dogmática com respeito à ciência não é algo novo, mas ficou muito em evidência durante a pandemia de Covid-19. O irônico em tudo isso é que não há nada mais contrário à ciência que tal atitude. A própria história mostra que as grandes figuras que inauguram o método científico como Bacon, Galileu e Descartes avançaram no conhecimento precisamente questionando a ciência estabelecida de seu tempo. Por exemplo, talvez tardaríamos muito mais em superar a cosmologia geocêntrica de Aristóteles e Ptolomeu se Galileu não tivesse ousado postular uma nova maneira de encarar o movimento dos planetas.


Hoje isso parece algo obvio, mas naquela época o assunto não era tão simples assim. Engana-se quem pensa que o modelo geocêntrico era algo simplório, infantil ou uma inferência de mentes rudes e pouco rigorosas. Durante milênios, ele funcionou prevendo fenômenos astronômicos e explicando de maneira bastante acurada os dados observáveis que podíamos coletar a olho nu. O caso mais emblemático do nível de precisão dos cálculos realizados é o próprio Calendário Gregoriano (1582) que utilizamos até hoje. Sim, as correções e inovações do novo calendário foram feitas a partir do modelo geocêntrico!


É comum a grande mídia também endossar um ideal dogmático de ciência. Todavia, o que se constata com mais frequência nos noticiários é a visão revolucionária: as grandes mudanças de paradigma. Perece que o único que estoura a bolha dos círculos acadêmicos e chega ao grande público são aquelas supostas descobertas avançando teorias que desfazem aquele conhecimento tido por muito tempo como seguro. Passa-se a impressão de que nada é conhecido de modo definitivo. É verdade que isso tem acontecido em alguns momentos da história como no caso da teoria da relatividade de Einstein que superou a mecânica Newtoniana.


Contudo, é sintomático o ambiente de ceticismo que se respira quando as pessoas são induzidas a pensar que a ciência está constantemente passando por uma mudança radical daquilo que até pouco tempo julgávamos conhecer. A conclusão — implícita na maioria e explicita em alguns — é que o saber científico se reduziria a elaboração meros modelos explicativos visando interpretar os dados, mas sem conexão real com a realidade em si. Nas palavras Nietzsche: Não há fatos, apenas interpretações”.


Dessas duas atitudes descritas, surge então a pergunta: o que esperar da ciência. Certeza ou dúvida? Realismo ou antirrealismo? Contato com a realidade ou especulações? Objetividade ou construção social subjetiva? Já adianto que as duas posições extremas: o realismo e o antirrealismo exagerados não correspondem àquilo que conhecimento científico pode nos entregar. Elas, ao contrário, desfiguram a verdadeira imagem da ciência moderna. Explico com mais detalhes começando pela tese antirrealista segundo a qual o método e a objetividade científica não passariam de uma construção humana possível.


A adequação entre uma hipótese e os dados provenientes da experiência nunca significa a prova definitiva de uma teoria. A pesar das muitas comprovações que uma teoria tenha apresentado ao longo do tempo, sempre existe a possibilidade de que outra estrutura explicativa, com proposições até mesmo contraditórias com respeito à anterior, sirvam também de instrumentos para acolher de modo inteligível os dados empíricos observáveis. Quine e Duhem denominam este traço do saber científico de subdeterminação das teorias. Em outras palavras, existe o que chamo de folga epistemológica entre teoria e realidade.


Isso se deve ao modo como historicamente se configurou a ciência moderna que, ao se separar da filosofia, optou por focar nos aspectos sensíveis e quantificáveis da natureza. Assim, suas afirmações poderiam ser justificadas por meio de experiências e suas generalizações (leis e teorias) formalizadas matematicamente. Em outras palavras, a ciência extrai seus dados do mundo observável. Dessa experiência sensível se consideram somente aquelas informações que são quantificáveis e matematizáveis. Extrai-se dessa consideração abstrata hipóteses com possíveis causas e/ou efeitos que deverão ser justificadas por uma via de regresso ao mundo observável em um experimento controlado e replicável. Por se mover na esfera da abstração matemática a ciência possuirá uma boa dose de idealização teórica nunca conformando-se perfeitamente ao fenômeno.


Por exemplo, imagine uma esfera de aço no mundo real. Aparentemente, ela parece perfeitamente esférica e sem defeitos. Mas, se a colocarmos sob um microscópio, veremos que começam a aparecer arranhões, protuberâncias, etc. Quanto mais acurada for nossa observação, mas imperfeita resultará nossa esfera. De fato, na realidade nunca encontraremos a esfera perfeita. Isso não quer dizer, contudo, que não haja conexão entre o que conhecemos no conceito de esfera e sua realidade extramental. A esfericidade se encontra realizada ou encarnada com mais ou menos perfeição nos objetos esféricos particulares. Ela é uma nota real de todas as coisas que se dizem esféricas. No entanto, a realidade não se esgota em seus traços matemáticos. Ela, de fato, transborda a matemática em uma infinidade de aspectos. Parafraseando J-L. Marion, o mundo real se nos apresenta como um fenômeno saturado. A ciência, por outro lado é um recorte idealizado dessa realidade infinitamente complexa.


Além da idealização matemática, outro aspecto da ciência moderna que descontrói o mito dogmático dos divulgadores científicos é a invulnerabilidade das teorias aos dados experimentais. É uma crença generalizada que a observação em um experimento controlado representa, em caso de uma confirmação, a justificação da verdade absoluta de uma hipótese; caso contrário, isso significaria a sua não adequação com a realidade. Não obstante, uma hipótese sempre é testada dentro de uma rede de teorias em que ela está inserida. Assim, quando testamos uma hipótese, estamos pondo em xeque toda essa rede de relações teóricas. Por isso, diante de uma falha experimental, não necessariamente ela estará apontando para uma falha na hipótese em questão. Pode ser o caso de o problema estar em algum outro nó da rede, o que resulta na dificuldade de localizar com precisão o problema.


Por tanto, uma hipótese que se mostre aparentemente incongruente com os dados poderia, a pesar disso, ser mantida fazendo ajustes nas hipóteses ou teorias auxiliares. É o que ocorre com a teoria da evolução: sempre que surgem novos dados que parecem ir contra o paradigma darwinista, novas hipóteses auxiliares são chamadas em questão para sustentar a principal. Por exemplo, já há algum tempo, cientistas vem constatando que o tempo de existência de nosso planeta é insuficiente para explicar a evolução e a complexidade biológica da vida que existiu, e existe até o momento, com os mecanismos de seleção natural e mutação genética aleatória. Diante desse desafio, fala-se hoje, a fim de justificar a necessidade de mais tempo para a evolução ocorrer dentro deste modelo, de uma panspermia cósmica: a vida teria surgido em outros locais do universo e chegado aqui por impactos de comentas ou asteroides… uma hipótese que, embora seja testável em tese, na prática resulta muito difícil de se comprovar. Ou seja, qualquer teoria pode se adequar aos dados empíricos acrescentando novas hipóteses auxiliares ou novos nós na rede relações teóricas que dão suporte à hipótese que está sendo avaliada.


Ao contrário do credo propagado pelos arautos da ciência, existe uma margem de adaptação das teorias diante das incongruências com os dados empíricos coletados. Por isso que a experimentação não é o único um fator determinante para qualificarmos taxativamente como verdadeira ou falsa determinada teoria, nem para descartarmos uma em favor de outra. Ademais, essa folga epistemológica e a impossibilidade de localizar com precisão as falhas na rede teórica abrem espaço para que entrem em jogo elementos de outras naturezas (sociológicos, políticos, metafísicos) na suplementação teórica necessária para que a hipótese corresponda e explique os dados. Enfim, a ciência não é uma atividade imune a influências subjetivas. Tais influências externas podem até mesmo condicionar aceitação e a manutenção de certas teorias menos adequadas por parte da comunidade científica (Kuhn).


Tudo isso, poderia nos levar a dar razão à critica antirrealista que termina negando qualquer acesso objetivo ao mundo real por meio da ciência, que ficaria relegada à tarefa de idealizar puros modelos explicativos sem garantia de um conhecimento real de como é o mundo. Porém, o sucesso e os acertos da ciência devem ser aqui chamados em causa para equilibrar a balança. O ceticismo e o antirrealismo exagerado são tão equivocados quanto o dogmatismo do realismo também exagerado dos arautos da ciência. A tecnologia derivada da ciência funciona e avança. Isso só seria possível com o conhecimento seguro do mundo em, pelo menos, alguns aspectos e campos.


No fundo, o problema do grau de certeza que nos oferece a ciência é um caso concreto do problema da justa compreensão do conhecimento humano em geral. O conhecimento não é um ato puramente físico e material como uma pedra quente que transfere o calor para outra pedra. Quando observamos e conhecemos uma cadeira não temos este objeto materialmente em nossa mente. Quando tocamos em uma pedra quente, certamente nossa mão também esquenta. Mas, quando largamos a pedra quente e nossa mão retorna a sua temperatura habitual, ainda mantemos o conceito ou ideia de calor. Por tanto, o conhecimento não é uma atividade exclusivamente material e receptiva ou passiva. Nele estão envolvidos processos de abstração que deixam de lado os aspectos particulares dos estímulos que recebemos dos objetos formando uma imagem representativa ou intencional da coisa conhecida. O conceito ou ideia é um signo ou referente natural que aponta para a realidade externa. Em outros termos, conhecemos a realidade no conceito e por meio do conceito.


Por outro lado, o erro oposto é pensar o conhecimento como um processo puramente ativo da mente que, por meio de suas estruturas psíquicas, desfiguraria de tal forma a realidade conhecida que seriámos incapazes de garantir a correspondência entre pensamento e realidade. Tudo que conhecemos procede dos sentidos, por isso há também um aspecto passivo nesse processo de aquisição do saber. Por conseguinte, o conhecimento não é nem totalmente passivo (F. Bacon), nem totalmente ativo (Kant). É um erro, por tanto, falar de objetividade e subjetividade como categorias excludentes. As duas estão presentes no processo do conhecimento. Assim, para salvar a objetividade do conhecimento em geral, basta afirmar um realismo moderado com respeito aos conceitos abstraídos da realidade. Não encontramos um paralelismo perfeito entre conceito e realidade, mas os conceitos representam algo que realmente existe nas coisas particulares.


Na mesma linha, podemos dizer que a objetividade da ciência se encontra no espectro de um realismo moderado de natureza estrutural e quantitativa. Histórica e metodologicamente a ciência moderna tem optado por uma análise experimental e operativa da natureza, o que resulta — em muitas áreas como a física — em uma descrição matemática da realidade. Por se moverem no domínio da abstração quantitativa e serem de natureza matemática, as estruturas descritas pelos modelos nunca esgotam a realidade. Isso, no entanto, não significa dizer que eles não podem dizer nada verdadeiro sobre o mundo. Esta limitação dos modelos só expressa o fato de que na ciência estamos trabalhando com um recorte da natureza que, enquanto tal, transborda aquilo que os modelos nos dizem sobre ela.


Dessa forma, por meio de equipamentos e observações mais acuradas, a folga epistemológica entre a realidade e os modelos pode ir sendo preenchida aos poucos com novos complementos e ajustes. O constante refinamento observacional pode também nos obrigar a abandonar por completo teorias objetivamente equivocadas como ocorreu no caso do geocentrismo de Ptolomeu. Contudo, a observação, por mais refinada que seja, nunca esgotará o fenômeno saturado que emana do mundo real em toda sua complexidade. Isso permite que outros suplementos entrem em cena no preenchimento dos espaços que encontramos entre teoria e realidade. Tais suplementos podem ser de ordem sociológica, histórica, política, metafísica e, inclusive, religiosa.


Cabe, por tanto, ao pesquisador um constante trabalho de autocrítica com respeito as essas outras influências que sempre estarão presentes e sobre como elas possam estar condicionando a pesquisa científica. Uma autocrítica não par excluir a priori qualquer elemento que não seja de cunho experimental ou matemático como se somente eles tivessem valor para a aquisição do conhecimento, mas no sentido de reconhecer o que de fato pode, ou não, estar contribuindo para o avanço sadio da ciência que reconhece a verdade como um ideal possível, mas nunca plenamente alcançável.



 

REFERÊNCIAS:


ARISTÓTELES. Sobre a Alma.

BACON, F. Novum Organon.

CARDO, J. L. El existir neutro como “Fenómeno saturado”: describiendo la contra-experiencia del exceso con Emmanuel Levinas y Jean-Luc Marion. Tópicos: Revista de Filosofía 49, 2015, p. 123-162.

GIMBO, F. S. Antirrealismo como crítica da ciência moderna. Problemata: R. Intern. Fil. V. 8. n. 2 (2017), p. 36-47.

KANT, E. Crítica da Razão Pura.

KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas.

KUHN, T. A função do dogma na investigação científica.

LACEY, Hugh. Valores e Atividades Científicas.



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