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  • Ivo Fernando da Costa

A ontologia do Tractatus Logico-Philosophicus:forma tomista, conteúdo suareziano


Resumo: O artigo exporá o problema da natureza da realidade desenhada nas primeiras seções do “Tractatus Logico-Philosophicus”, de Wittgenstein, especialmente os aforismos 1 ao 2.063 mostrando pontos de contato entre as tradições aristotélico-tomista e suareziana. Inicialmente, (I) estabelece-se uma distinção entre metafísica e ontologia a fim de entender porque Wittgenstein, notoriamente conhecido por seu pensamento antimetafísico, termina de fato produzindo uma teoria da realidade. Posteriormente, (II) se definirá a relação entre realidade e linguagem a partir do isomorfismo característico do Tractatus em que aparecerá uma semelhança estrutural com o pensamento aristotélico-tomista. Tal relação será a base para (III) a construção de uma imagem ontológica da realidade como condição de possibilidade para uma linguagem com sentido. Diante deste panorama, se avançará (IV) a hipótese da influência do pensamento de Francisco Suárez como horizonte conteudístico desta descrição wittgensteiniana da realidade.

Palavras-chave: Tractatus; ontologia; objetos; fatos; contingência; linguagem; possibilidade; necessidade.


I


Um traço comum da recepção dos textos de Aristóteles no mundo islâmico e cristão foi a inserção da distinção entre existência e essência no seio da estrutura metafísica do ente.[1] São Tomás, na esteira do pensamento de Avicena, construirá sua metafísica sobre tal distinção colocando, contudo, a primazia na existência como princípio metafísico fundacional.[2] Com Escoto e Ockham o foco do estudo da realidade deixa de ser a existência e se centrará na essência. Com este giro, estão colocadas as bases da ontologia como estudo do ser a partir da essência entendida epistemologicamente como algo possível, ou não contraditório, e ontologicamente como algo oposto ao nada.[3]

Comumente costuma-se indicar a Christian Wolff como a figura que projetou definitivamente o termo ontologia com o significado acima referido na obra “Philosophia Prima Sive Ontologia”. No entanto, o próprio Wolff reconhece em Francisco Suárez o primeiro a assentar as bases da ontologia em sua principal obra, as “Disputationes Metaphysicae”[4] – ainda que o termo ontologia não apareça nela. De fato, a distinção que traça Wolff entre “Metafísica Generalis” ou Ontologia – que estuda o ente em suas propriedades gerais e meramente possíveis – e “Metafísica Specialis” – que estuda entes concretos existentes – corresponde exatamente a estrutura da obra de Suárez também dividida em duas partes.

Pode-se ir mais longe e afirmar que nas Disputas Metafísicas encontra-se a gênese da ontologia[5] ao operar um giro tanto no foco essencialista dado ao estudo do ente como na primazia dada ao papel da filosofia. A partir dela, a filosofia começará a se desvincular da teologia, pois a própria figura de Deus se colocará sob a noção de ente enquanto tal: “além das substâncias e dos acidentes reais, em efeito, o ens ut sic compreende também a Deus e as substâncias imateriais”.[6]

Tendo presente este giro, será útil fazer uma distinção entre ontologia e metafísica. Do ponto de vista teórico, se mostrará mais adiante a centralidade da noção de possível para a compreensão dos objetos do Tractatus. Uma razão mais prática desta distinção está no fato de que o termo ontologia poderia designar mais genéricamente uma teoria da realidade sem um posicionamento prévio. O conceito de metafísica, ao contrário, já teria embutido um posicionamento prévio sobre a natureza da realidade. Ou seja, o estudo daquelas entidades que estão além da física como as substâncias separadas ou dos princípios da realidade que não têm caráter empírico tal como a matéria prima e a forma substancial.

Tal distinção serve para aliviar a tensão entre o caráter marcadamente antimetafísico do pensamento de Wittgenstein e sua proposta ontológica nas primeiras seções do Tractatus. Sua postura antimetafísica se insere no contexto do Neopositivismo que fazia frente a uma visão mística e romântica oriunda tanto do idealismo quanto do existencialismo, privilegiando a razão sobre ecletismo e a lógica sobre a intuição. Para isso, era necessário uma linguagem isenta de ambiguidades que desse à ciência uma fundamentação lógica consistente e descartasse todo traço metafísico do discurso sobre o mundo estabelecendo com objetividade uma relação entre realidade e linguagem.


II


Em uma primeira aproximação superficial, a linguagem poderia ser definida como um sistema convencional de símbolos usados para transmitir informação. A função do símbolo é apontar para outra realidade, além daquilo que ele mesmo é. Nele estão envolvidos três elementos: o significado ou referência é a realidade a que aponta o símbolo; o significante, elemento material usado para veicular a informação como, por exemplo, a palavra escrita e o sentido, que é o modo de apresentação do significado.

Ao se pensar a linguagem e sua relação com a realidade, em um primeiro momento, parece que esta se esgotaria na convencionalidade de vincular um símbolo a um objeto. No entanto, a relação entre um nome e o objeto nomeado é qualitativamente diferente da relação entre a proposição e a situação que ela designa. Tomás de Aquino, comentando as obras de lógica de Aristóteles percebeu isso ao identificar as três operações da mente: a simples apreensão, o juízo e o raciocínio. Na simples apreensão a mente capta a ideia ou essência da coisa; no juízo, compondo e separando a mente afirma a verdade ou falsidade do ser da coisa; e a terceira operação constitui uma ilação de juízos.[7]

Para se compreender um nome, basta que seja explicado seu significado. Já no caso de uma proposição é possível conhecer seu sentido, mesmo que não se saiba sua verdade ou falsidade, de tal modo que é possível compreender uma nova proposição sem precisar de uma explicação de seu significado.[8] Em vista disso, uma proposição pode ter significado, mesmo que ela seja falsa. Isso quer dizer que o sinal proposicional não aponta para um objeto, mas para o que Wittgenstein chama de fato. Se o significado das proposições fosse elas estarem por um objeto no mundo, as proposições falsas não teriam significado, o que é um absurdo.[9]

A ontologia de Wittgenstein desenvolverá uma busca pelas condições de possibilidades para que se de uma linguagem com sentido dentro de um marco veritativo de adequação entre realidade e linguagem: “Se o mundo não tivesse substância, ter ou não sentido uma proposição dependeria de ser ou não verdadeira uma outra proposição. Seria então impossível traçar uma figuração do mundo (verdadeira ou falsa)”.[10] Diante da evidência de uma linguagem com significado, pergunta-se como deve ser a realidade à qual ela se refere como fundamento. A imagem ontológica da realidade em Wittgenstein se apresenta como uma espécie de dedução transcendental a priori,[11] seguindo uma estrutura formal tripartite em linha com as três operações da mente descritas por Tomas de Aquino que se desenvolverá na próxima epígrafe.


III


A seção ontológica do Tractatus abrange os aforismos (1) ao (2.063) e pode-se dividi-la em três apartados: (A) Mundo (1 ao 1.21) e realidade (2.04 ao 2.063); (B) fato e estado de coisas (2 ao 2.0141); (C) objetos (2.02 ao 2.034). Deve-se reconhecer que estes tópicos não estão distribuídos de modo rígido. São como grupos temáticos concentrados nos trechos mencionados. Por isto o próprio Wittgenstein, com muita liberdade, seguirá esta tripartição a partir do aforismo (2.1) quando começa a desenvolver sua teoria da linguagem: proposições moleculares correspondendo a (A); proposições elementares a (B) e nomes a (C). Pode-se afirmar que a imagem ontológica do Tractatus e sua correspondente filosofia da linguagem possuem, do ponto de vista formal, uma influência da tradição aristotélico-tomista que remete às três operações da mente já mencionadas.


(A) Mundo e realidade


A seção ontológica do Tractactus começa com uma descrição do mundo e termina com uma descrição da realidade. São termos muito próximos e certa ambiguidade do texto dificulta ainda mais sua elucidação. Não obstante, ao que tudo indica, são noções realmente distintas. De fato, os significados dos conceitos expostos pelo autor vão tomando corpo aos poucos na medida em que o texto avança. Não é intenção de Wittgenstein fornecer um entendimento completo de seus aforismos sem antes ter uma certa familiaridade com o assunto.[12]

Ainda que as noções de mundo e realidade estejam colocadas nas pontas da seção ontológica, elas estão intimamente relacionadas. “O mundo é tudo que é o caso”.[13] Contudo tal afirmação é bastante vaga, ainda que alinhada ao sentido comum: Se algo sucede, deve evidentemente ser real. Mas no próximo aforismo, quando Wittgenstein começa e especificar o que entende por “ser o caso”, lança uma afirmação que vai na contramão do sentido comum: “O mundo é a totalidade dos fatos e não das coisas”.[14] Para Wittgenstein, a unidade básica que descreve a realidade são os fatos, enquanto que a tendência natural seria entender os fatos como uma lista de coisas.

Com a premissa de que aquilo que sucede é o fato e que este é a unidade básica do mundo, o próximo aforismo sucede de modo bastante direto: O mundo é limitado e determinado, isto é, delineado por todos os fatos existentes.[15] O que lhe segue, curiosamente, é outra vez contra intuitivo. A totalidade dos fatos existentes determina não somente o que é o caso, o mundo, mas também o que não é o caso[16] que o aforismo (1.13) chama de “espaço lógico”. Tem-se, então, a totalidade dos fatos existentes em um âmbito de atuação maior dos fatos que não são o caso. Em (1.21) se introduz a noção da independência dos fatos dentro de um espaço lógico que será trabalhada mais adiante para se fundamentar a noção da independência do sentido das proposições elementares.[17]

Este âmbito de atuação estendido é consequência do que sucede. O todo, ou seja, o espaço lógico se elucida a partir do que efetiva e contingentemente está realizado no caso: “Não é preciso, por certo, que a mancha no campo visual seja vermelha, mas uma cor ela deve ter: tem à sua volta, por assim dizer, o espaço das cores. O som deve ter uma altura, o objeto do tato, uma dureza, etc.”.[18] Em definitiva, Wittgenstein parece dar uma qualificação positiva para o que mais a frente chamará de fato negativo e que se relacionará com a noção de realidade.

Fica destarte delineado um arcabouço ontológico em Wittgenstein: o mundo como parte resolvendo-se nos fatos existentes e a realidade encerrando tudo que é o caso e o que não é o caso lido a partir daquilo que de fato se dá. Wittgenstein posteriormente especificará melhor esta noção de fato negativo, mas para tanto, é necessário antes precisar o que é um fato.


(B) Fato e estado de coisas


Pode-se imaginar a dinâmica do Tractatus como uma espiral, avança propondo conceitos, mas em seguida retorna a ideias anteriores para iluminá-las com desenvolvimentos mais recentes. É o que faz a partir do número dois em seu sistema decimal de organização. Uma vez afirmado que o fato é a unidade básica do mundo sucedendo dentro de um espaço lógico, seu foco agora será descrever o fato: “O que é o caso, o fato, é a existência de estados de coisas”.[19] O aforismo está fazendo três coisas: em primeiro lugar, afirma o que há de comum ao conjunto de aforismos subordinados a (2) e os subordinados ao (1); depois determina a especificidade de (2) e introduz uma distinção.

Um detalhe que pode passar despercebido nos aforismos subordinados a (1) é que Wittgenstein ali se refere holisticamente ao mundo como a totalidade dos fatos ou tudo que é o caso. Já a partir de (2), começa a tratar do fato em singular. O que há de comum entre (1) e (2) é que ambos se referem a fatos, mas em (1) trata do fato em geral e (2) do fato em particular.

Feito isso, introduz a distinção entre fato e estados de coisas. O próprio texto padece de certa ambiguidade, pois dá a entender que fato é sinônimo de estados de coisas. Contudo o termo “existência de” determina uma clara distinção entre eles. A noção de estado de coisas é mais ampla que a de fato podendo significar fato possível, incluindo o que poderia ser o caso e o que atualmente é o caso. Nesta esteira, algumas traduções distinguem “fato atômico” como o estado de coisas atualmente existente ao qual se referirão futuramente as proposições elementares e “estado de coisas”. Esta distinção parece estar em harmonia com o texto em geral, levando em conta que o objetivo de Wittgenstein nesta seção é assentar os fundamentos ontológicos da linguagem. Ademais, os próximos aforismos que introduzirão a noção de possibilidade marcarão mais ainda a distinção entre estado de coisas e estado de coisas existentes ou fato atômico.[20]

Até o momento a exposição abordou o par “fatos/fato”. Fatos em geral, são compostos de fatos atômicos. Fatos atômicos são os elementos que compõe o mundo. Agora, ao descrever especificamente o fato atômico, Wittgenstein apresenta o par “objetos/objeto”. Sobre objetos em geral afirma: “O estado de coisas é uma ligação de objetos (coisas)”.[21] Da mesma forma que o mundo se apresenta como um conjunto de fatos constituído, em última análise, de fatos atômicos, igualmente o fato atômico está composto de objetos identificados como coisas cujo traço essencial é serem parte constituinte de um estado de coisas.[22] Esta é uma abordagem geral, não simplesmente porque se refere a objetos e coisas no plural, mas porque sem mais qualificações assere que os objetos são parte constitutiva do estado de coisas. Se a narrativa sobre os objetos se detivesse aqui, o leitor seria espontaneamente induzido a pensar o mundo como a totalidade objetos indo de encontro ao afirmado no aforismo (1.1) que “o mundo é a totalidade dos fatos, não das coisas”.


(C) O objeto em particular


Para entender como o mundo não se reduz a um conjunto dos objetos Wittgenstein passa a abordagem da coisa em particular. Neste sentido é possível dividir a exposição do tema em três momentos: o objeto em relação ao fato; o objeto em si mesmo e esclarecimento de temas anteriores em relação a presente noção de objetos.

Sobre o objeto em relação ao fato, o primeiro que se deve ter em mente é que eles não existem soltos, mas se dão somente na relação que constitui um fato concreto. Neste sentido, o objeto é dependente do fato. Em um segundo momento, abstraindo da relação concreta em que se dá o objeto no fato é possível induzir o objeto em sua possibilidade combinatória total. Por isso Wittgenstein afirma que “a possibilidade do estado de coisas já deve estar pré-julgada na coisa”[23] e “se as coisas podem aparecer em estados de coisas, isso já deve estar nelas”.[24] Portanto, se chega a noção de objeto prescindindo da situação específica em que aparece na relação, todavia deve-se ressaltar que o existente é uma possibilidade concreta realizada. Com isto se reconhece que tal relação específica é meramente contingente e que os objetos ali combinados poderiam estar de outra maneira:


Assim como não podemos de modo algum pensar em objetos espaciais fora do espaço, em objetos temporais fora do tempo, também não podemos pensar em nenhum objeto fora da possibilidade de sua ligação com outros. Só posso pensar no objeto na liga do estado de coisas, não posso pensar nele fora da possibilidade dessa liga.[25]


Objeto, como constituinte do fato, traz a ideia de autossuficiência, mas não de independência. A coisa se configura como uma possibilidade de ligação, mas que como tal não existe. Sua existência se dá no fato que a contrai à realização de uma das possibilidades. O resultado disto é que há ao mesmo tempo dependência e independência na relação fato-coisa na medida em que o fato se compõe de coisas e a coisa se realiza no fato. A contrapartida desta relação de dependência existencial ou material é a de independência formal das possibilidades lógicas do objeto abstraído da relação em que existe: “A coisa é autossuficiente, na medida em que pode aparecer em todas as situações possíveis, mas essa forma de autossuficiência é uma forma de vínculo com o estado de coisas, uma forma de não ser autossuficiente”.[26]

Esclarecida a relação entre objeto e fato, Wittgenstein passa a analisar o objeto em si, prescindindo da sua aparição concreta no fato. Sob esta ótica, o objeto se configura como um possível. Não somente se reconhece outras possibilidades combinatórias na contingência do fato, mas conhecer o objeto é conhecer todas as possibilidades de sua aparição. A natureza do objeto ou sua forma[27] consiste em todas suas possibilidades de se manifestar em fatos.[28] O objeto, ao contrário do fato, é necessário e universal.

Deste modo é possível indicar uma distinção entre objeto como possibilidade de existência e objeto como existência de uma possibilidade que estará na raiz do que Wittgenstein chama de propriedades internas e externas. Em geral “uma propriedade é interna sé é impensável que seu objeto não a possua”.[29] É uma noção muito próxima a de essência, natureza ou forma do objeto, contudo existe um matiz de diferença: primeiro que lhe é essencial ao objeto fazer parte de um estado de coisas, ou seja, que o objeto não se dá senão “na liga do estado de coisas”;[30] em segundo lugar, denota também suas propriedades internas ou formais, como possibilidade de combinação em diferentes estados de coisas.

A noção de essência ou natureza implica a de propriedade ou forma, mas não vice-versa: “Cada coisa está como que num espaço de possíveis estados de coisas. Esse espaço, posso concebe-lo vazio, mas não a coisa sem o espaço”.[31] É possível considerar o objeto somente em suas propriedades internas como possibilidade de configuração em um estado de coisas.[32] As propriedades externas, pelo contrário, não são necessárias nem essências e sim contingentes, constituídas pelas configurações dos objetos.[33] Por isso afirmará mais adiante que “em termos aproximados: os objetos são incolores”.[34]

Isso quanto a noção de propriedades formais ou internas em geral, considerando o objeto isoladamente. Mas em outras passagens, em específico, Wittgenstein fala de propriedades formais de estados de coisas[35] e forma do mundo.[36] Para entender estas distinções, imagine-se um mundo composto de três objetos: “a”, “b” e “c”. A forma de um objeto são suas possibilidades totais de combinação em fatos atômicos o que implicaria, por exemplo, na relação “a/b” e “a/c” e nas suas modalidades combinatórias. O Fato “a-b” é diferente do fato “a~c”, não somente pelos elementos que estão se combinando, mas também pela modalidade combinatória de tal maneira que o fato “a-b” é igualmente diferente de “a~b”. Suponha-se que “a” está por “cor” e que as cores sejam amarelo, vermelho e azul. Por outro lado, que “b” esteja pelo tempo ontem, hoje e amanhã. Assim é possível que cor e tempo estejam relacionados de diferentes modos: “amarelo-ontem”, “amarelo-hoje”, etc. Neste sentido, afirma Wittgenstein: “Espaço, tempo e cor (ser colorido) são formas dos objetos”.[37]

No que se refere às propriedades formais do estado de coisas, considera-se agora a possibilidade combinatória total de um objeto “a” em estado de coisas com outros objetos. Por exemplo, as possíveis combinações entre os objetos “a/b” são todas as possibilidades de “a” se relacionar com “b”: “a-b”, “a~b”, “a^b”, etc. Neste contexto, o autor traz a noção de estrutura do fato atômico, análoga a de propriedades materiais do objeto, que nada mais é que a maneira como os objetos se vinculam no estado de coisas.[38] Em relação à estrutura, a forma pode se definir como “a possibilidade da estrutura”.[39]

Finalmente a forma fixa do mundo é o produto total das combinações em fatos atômicos de todos os objetos do mundo. Poder-se-ia pensar por simetria que, bem como o fato composto de objetos tem uma forma e uma estrutura, também o mundo, cuja “forma fixa consiste precisamente nos objetos”,[40] teria analogamente uma estrutura. Contudo, uma característica do fato atômico é sua independência.[41] Ao fato atômico lhe corresponde o que depois chamará de proposição elementar.[42] Assim sendo, uma das características de uma proposição elementar é que nenhuma outra proposição elementar a pode contradizer. Por isso os fatos nos quais se resolvem o mundo não possuem uma estrutura que determina o modo como eles se relacionam.[43]

Além de sua natureza e de suas propriedades formais, os objetos têm outra característica que é a simplicidade.[44] Eles não possuem partes constituintes como as coisas da experiência ordinária às quais a linguagem comum se refere. A razão da simplicidade dos objetos está relacionada com a teoria da linguagem como uma figuração do mundo. De fato, é interessante notar como Wittgenstein traz para dentro da seção ontológica sua teoria da linguagem como figuração do mundo, adiantando um tema que se desenvolverá a partir do aforismo (2.1) a fim de justificar a simplicidade dos objetos. Para se ter uma linguagem com sentido, em última instância é preciso postular a existência dos objetos: “Todo enunciado sobre complexos pode-se decompor em um enunciado sobre as partes constituintes desses complexos e nas proposições que os descrevem completamente”.[45] A análise lógica deve chegar às proposições elementares compostas de nomes em ligação imediata que se referem diretamente a objetos simples em estados de coisas:[46] “Um nome toma o lugar de uma coisa, um outro, o de uma outra coisa, e estão ligados entre si, e assim o todo representa - como um quadro vivo - o estado de coisas”.[47]

Se o mundo não tivesse elementos simples, a análise lógica não teria fim e o sentido de uma proposição composta dependeria de outra anterior que a sua vez também seria composta, dependendo de outra anterior iguamente composta... haveria uma regressão infinita acarretando a conclusão de que não existe uma conexão entre proposição e seu suposto correlato. Mas para Wittgenstein a linguagem como figuração do mundo não é um fracasso.[48] A conclusão é que a análise terminaria nas proposições elementares. Estas a sua vez são compostas de nomes simples que se referem a objetos simples. Se os nomes são os elementos da proposição elementar, as coisas ou objetos são a substância do mundo e, como resultado, não podem ser compostos,[49] pois a negação dos simples implicará em uma incompatibilidade lógica com a afirmação do sentido das proposições da linguagem. Para que uma proposição tenha sentido, é necessário que haja uma identidade de elementos ontológicos e linguísticos arranjados do mesmo modo de maneira que se possa representar o mundo.[50]

Por este motivo o autor afirma não somente que os fatos são simples, mas são também “a substância do mundo”[51] e que esta “é forma e conteúdo”[52]. São conteúdo pelo fato de os nomes e os objetos relacionarem-se como os elementos materiais que compõem respectivamente a proposição e o fato atômico. Por outro lado, se diz forma porque nos objetos e, por conseguinte, nos nomes deve de haver a possibilidade de todas as suas configurações de aparecimento em estados de coisas.[53]