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  • Ivo Fernando da Costa

O universal como um horizonte vertical no pensamento político de Judith Butler


Publicado em: COSTA, Eduardo da; PEREIRA, André Phillipe (Orgs.). Ensaios em perspectiva filosófica e teológica. Jaraguá do Sul: Mundo Acadêmico, 2019, p. 186-215. https://doi.org/10.5281/zenodo.3687018



Introdução


Este trabalho visa fazer uma leitura da noção de universal no pensamento de Judith Butler, examinando a seguinte hipótese interpretativa: a partir da formulação do conceito de “precariedade”, em “Precarious Life” (2004), os textos de Butler aparentam sofrer uma inflexão na direção de um fundamento ético-político de caráter normativo, anteriormente recusado pela autora, como evidenciado em seu debate com Nancy Fraser e Seyla Benhabib nos anos 90. Trata-se, portanto, de interrogar o impacto desta mutação teórica que surge nas entrelinhas da produção filosófica da autora quando esta instaura a “precariedade” e a “codependência” como condições ético-políticas que devem orientar pautas destinadas a tornar possível e viável a vida em comum.

Reconhece-se que tal objetivo configura-se como um empreendimento no mínimo um tanto quanto audaz dado o perfil da autora engajada na ação em prol do feminismo à luz de tradições filosóficas como as de Nietzsche e Foucault. Além disso, salvo em algumas ocasiões, o problema do universal não costuma ser tratado diretamente nas obras de Butler. Ele aparece na forma de uma crítica pós-estruturalista, ou de modo velado como raiz e pano de fundo que dá suporte às suas argumentações, sejam contra ou a favor como se verá mais adiante. O que se busca neste artigo é olhar além ou através do véu das discussões concretas que estabelece Butler, ao longo de algumas de suas principais obras, e evidenciar o papel da noção de universal como eixo argumentativo.

Esquematicamente, este objetivo desdobrar-se-á em três etapas: o universal negado no seu conteúdo e na sua forma em “Gender Trouble” (BUTLER, 1990); o universal formalmente afirmado, mas negado em seu conteúdo no debate em torno a questão da normatividade (BUTLER, 1998); o universal formal e materialmente afirmado a partir de “Precarious Life” (BUTLER, 2004). Igualmente serão abordadas as diferentes noções de sujeito que emergem de cada um destes três entendimentos de universal.


Gender Trouble”: O universal negado em seu conteúdo e forma


Em 1990, Judith Butler publica “Gender Trouble”, obra que a projeta em nível mundial, vindo a ocupar, assim, um espaço teórico disputado dentro do feminismo. O aspecto em questão, ao redor do qual orbitam as discussões no final da década de 80 e início dos anos noventa, é o debate em torno da normatividade. A preocupação da autora está centrada em um esforço de reflexão sobre a opressão de gênero e suas raízes fundacionalistas. E uma dessas raízes, se não a principal, é precisamente a categoria de universal que justifica teoricamente a exclusão da mulher.

Por este esse motivo, o modelo normativo do humanismo, como marco para o feminismo, é fortemente criticado e rejeitado pela autora (BUTLER, 1990). Entendendo a política como um espaço constantemente aberto de disputa, Butler posiciona-se contra a noção iluminista e contratualista de universal como uma ficção jurídica sob a roupagem de um fundamento ontológico sobre o qual se assenta e se julga a adequação de práticas políticas e morais: “A invocação performativa de um antes não histórico torna-se a premissa fundacional que garante uma ontologia pré-social de pessoas que consentem livremente em serem governadas e, assim, constituem a legitimidade do contrato social” (BUTLER, 1990, p. 3).[1]

Colocada em questão uma fundamentação ontológica do sujeito e da política, evidencia-se criticamente seu caráter social e histórico do qual emergem o sujeito e seus atributos universais legitimados pelo contrato social. Visto desde outra perspectiva, já não há um conjunto “a priori” de categorias a serem desveladas tal como se revelam as leis da física em uma ótica newtoniana. O quadro social é o resultado das relações de poder e de saber que, com seus jogos políticos, constroem um sujeito detentor de direitos presumidamente a-históricos e predicados alegadamente universais, mas que, em última análise, competem-lhe por força de uma convenção jurídico-política. Assim, tem-se uma leitura nietzschiana em que os fatos não dizem nada (NIETZSCHE, 2009), pois necessitam de um marco teórico-social de interpretação (KUHN, 2013) capaz de conferir sentido aos dados articulados pelo discurso científico.


E o que é "sexo" afinal de contas? É natural, anatômico, cromossômico ou hormonal, e como uma crítica feminista avalia os discursos científicos que pretendem estabelecer tais "fatos" para nós? […] São os fatos ostensivamente naturais do sexo discursivamente produzidos por vários discursos científicos a serviço de outros interesses políticos e sociais? (BUTLER 1990, p. 6-7).[2]


Sob essa ótica, sujeito e predicado não são mais que o resultado artificial da linguagem (NIETZSCHE, 1992), o que abre espaço para evidenciar sua verdadeira origem genealógica. Transladada esta ficção ontológica para o campo da teoria feminista, tem-se como resultado a leitura binária e estática do gênero com a predominância do masculino sobre o feminino (DUARTE; CÉSAR, 2016). Por esse motivo, Butler (1990), em “Gender Trouble”, mostra uma forte recusa à noção de universal.


O pressuposto político de que deve haver uma base universal para o feminismo encontrada em uma identidade supostamente existente transculturalmente, frequentemente acompanha a noção de que a opressão das mulheres tem alguma forma singular discernível na estrutura universal ou hegemônica do patriarcado ou dominação masculina (BUTLER, 1990, p. 3).[3]

Diante da consensualidade dos padrões políticos-normativos, essa autora traça um ponto de contato com o pensamento de Foucault ao inquirir sobre os mecanismos que abrem o caminho a certo “status quo” operativo que, por meio de práticas excludentes, fundamentam um entendimento do sujeito como hipóstase estática em predicados necessários. A fragilidade de tal metafísica da substância (BUTLER, 1990) fica evidente diante de sujeitos que não se adéquam a ela ou que até mesmo buscam subverter o quadro normativo, abrindo espaço para uma crítica que denuncia a autoafirmação de um estatuto heurístico e meta-político dos fundamentos sobre os quais se assentam as relações sociais. Este pressuposto epistemológico de inteligibilidade, ao manter de sua praxe vinculante, termina por promover uma leitura ontológica forte de ditas relações que, em sua essência, são moldadas histórica e culturalmente.

Afirmado o caráter genealógico do discurso político como marco epistemológico que gera exclusão, é possível evidenciar os mecanismos de poder que atuam horizontalmente sem referência a um fundamento universal. Diante de novas circunstâncias, tal dinâmica possibilita a infiltração de diversos grupos não contemplados pela norma que reivindicam sua inserção nela, abrindo espaço para uma construção performativa do eu em seus atributos, estabelecendo, assim, um humanismo que garante o exercício existencial da liberdade no sentido sartreano da palavra em que a existência precede à essência e que o ser humano não é, mas se faz (SARTRE, 2005).

Neste primeiro texto, fica clara rejeição de Butler (1990) a noção de sujeito e de universal desde a perspectiva iluminista e contratualista da mesma. Como pensadora de superfície, Butler parte daquilo que objetivamente tem, sem pressupor nada além das evidências históricas visando “formular dentro deste marco constituído uma crítica das categorias de identidade que as estruturas jurídicas contemporâneas engendram, naturalizam e imobilizam” (BUTLER, 1990, p. 5).[4]

Além disso, parte-se do fato histórico sem um olhar vertical ampliado e generalizante que visa um esgotamento categorial, ou seja, não se toma como pressuposto uma construção do todo a partir da experiência de uma ou algumas de suas partes, dito salto só se justificaria como uma manobra das estruturas estabelecidas de poder. Vislumbra-se, deste modo, em Butler, uma rejeição do universal, tanto no que diz respeito à sua forma normativa quanto a seu conteúdo histórica e socialmente dado.


O universal afirmado em sua forma e negado em seu conteúdo


A entrada do pensamento de Foucault na discussão dá espaço para uma pequena, mas importante mudança de postura da autora em relação à noção de universal com a ideia de que as próprias estruturas excludentes de poder carregam consigo a gênese de sua subversão: sujeitos fora do cenário político, ao não se adequarem veritativamente a certas categorias que conferem privilégios, reconhecimento e direitos, eventualmente podem reivindicar sua inclusão dentro deste arcabouço estrutural (BENHABIB et al., 1995). Pode-se dizer que é a gênese de uma guinada de corte mais normativo no pensamento de Butler que começa a aparecer com a publicação dos debates “Feminist Contentions”.

A publicação de “Gender Trouble” eleva Butler ao patamar internacional, puxando-a para o centro do debate da teoria crítica versus pós-modernismo. Neste contexto, Butler é convidada a expor suas ideias e debater em um simpósio tido em setembro de 1990 em Praga. Nele encontram-se também Seyla Benhabib e Nancy Fraser como herdeiras da teoria crítica. Esses debates, com suas respectivas respostas, foram posteriormente publicados sob a forma de livro com o nome de “Feminist Contentions: A Philosphical Exchange”. O ensaio de Butler vem intitulado como “Contingent Foudantions: Feminism and the Question of ‘Postmodernism”[5]. Os eixos centrais da argumentação são os seguintes: posicionamento inicial sobre a noção de pós-modernismo e sua aplicabilidade; o problema do estabelecimento de normas além da política; o universal aberto; a questão do sujeito em geral e a questão do sujeito feminino em concreto. O debate vai além daquilo que o título da obra sugere: o embate entre duas posições exacerbadas, a saber, defensores da tradição iluminista com um sujeito completamente destacado da situação histórico-cultural fundado em uma noção de universal de matriz neoplatônica com um tal grau de consistência ontológica capaz de subsistir separadamente (BENHABIB et al., 1995) contra uma Butler heraclitana em que tudo está imerso em um perpétuo fluxo (BENHABIB et al., 1995).

Benhabib e Fraser (1995) afirmam a validez dos fundamentos da teoria crítica, mas lidos em uma chave pós-moderna ao reconhecer o papel do contexto de fronte ao sujeito e seus atributos universais. Com isto, busca-se harmonizar os dois mundos em um movimento vertical de descida que vai do universal como fundamento ao concreto como fundamentado em suas circunstâncias histórico-culturais. Tal posicionamento está motivado pela pressuposição de que, se tudo se reduz a uma construção social em suas relações de poder, não será possível um juízo crítico que dirima os conflitos. O que restaria então seria um universo pautado nas premissas de Nietzsche em que o termo “a quo” e o “ad quem” da ação humana é única e exclusivamente o poder. Benhabib e Fraser, portanto, advogam por uma versão deflacionada do pós-modernismo, evitando um giro niilista radical cuja consequência estaria no colapso teórico de qualquer causa em prol do feminismo:


Borrowing from Jane Flax’s claims about certain key tenets of postmodernism, Benhabib elaborates this separation in relation to the following three theses: the death of man, the death of history, and the death of metaphysics. Benhabib argues that all of these theses can be articulated in both weak and strong versions. The weak versions offer grounds for feminist support. However, Benhabib claims that in so far as postmodernism has come to be equated with the strong formulations of these theses, it represents that which we ought to reject (BENHABIB et al., 1995, p. 2).[6]


A preocupação de Butler é bem distinta da de Benhabib. Enquanto esta busca salvaguardar os fundamentos da tradição iluminista com um sujeito autônomo e livre como o protagonista crítico da história, aquela busca questionar as consequências políticas de uma afirmação acrítica de princípios “a priori” para a ação humana historicamente engajada. A política definida como espaço de disputa parece contradizer a si mesma ao estabelecer autoritariamente um fundamento meta-político. Butler aponta para o risco da presença de um autoritarismo velado por de trás desta filosofia política normativa (BUTLER, 1998).

Com tal noção de política, Butler passa à crítica do sujeito e do universal em si. O ponto central, colocado nas entrelinhas da argumentação, é a posta em questão das bases do pensamento filosófico ocidental no entendimento de realidade como limite e a metafísica como instrumento epistemológico de domesticação do ser-idêntico (PLATÃO, 2003). Nesta chave, o outro, o diferente, o que não se adéqua ao ente matematicamente desenhado, ficaria excluído da realidade. Este é o problema que a autora, desde diferentes direções está atacando: que o universal abstrato, entendido à maneira de fundamento paradigmático da realidade, carrega consigo a gênese da exclusão e da alteridade operada pelo fechamento de suas fronteiras, impedindo assim o exercício existencial da liberdade.

Partindo dessa crítica, Butler parece estabelecer uma importante distinção dentro da análise da noção de universal: do ponto de vista formal, o universal assume o caráter de necessidade dado que se algo é sempre válido, deve também ser necessário o qual, sob uma ótica axiológica, se traduz num discurso normativo. Tal discurso normativo tem seu referencial e, logo, sua justificativa em um dado conteúdo. Do ponto de vista de Kant (2011), o universal é capaz de fazer derivar, em um movimento descendente, a sua própria matéria do núcleo normativo como um prisma epistemológico cujo foco confere inteligibilidade e legitimidade a certos padrões comportamentais em detrimento de outros.

É neste ponto que a postura de Butler, diante do universal, começa a sofrer uma inflexão. Se em “Gender Trouble” havia uma profunda desconfiança da ideia de universal, visto que toda afirmação de uma posição produz uma exclusão, em “Contingent Foudations”, o foco não se encontra mais no conteúdo excluído da definição de universal, mas sim seu potencial de ação política contido em sua dimensão de poder. Isso se constata pelo fato de que os que não são compreendidos pelo arco de inteligibilidade do universal reivindicam poder estar sobre ele e seus benefícios, pensando o universal como indefinido em seu conteúdo, mas ainda imbuído do poder de mudar as estruturas sociais para uma lógica de inclusão. Sobre este aspecto, a noção de universal funciona produzindo efeito (BENHABIB et al., 1995).

Em outras palavras, reconhece-se na ideia de universalidade um potencial político, pois é em nome da universalidade que o excluído do universal reivindica a sua inclusão e, ao fazê-lo, mostra a contradição do universal que o exclui (BUTLER, 1998). É necessário, por tanto, pensar o universal como categoria aberta em que a possibilidade de ressignificação está posta pelos agentes que o invocam desde sua posição de excluídos, ampliando e fazendo uma crítica do universal como um dado. Pode-se concluir, então, que o universal se afirma por sua forma e se nega por sua matéria.


O termo ‘universalidade’ teria de ficar permanentemente aberto, permanentemente contestado, permanentemente contingente, a fim de não impedir de antemão reivindicações futuras de inclusão. Com efeito, de minha posição e de qualquer perspectiva historicamente restringida, qualquer conceito totalizador do universal impedirá, em vez de autorizar, as reivindicações não antecipadas e inantecipáveis que serão feitas sob o signo do “universal”. Nesse sentido, não estou me desfazendo da categoria, mas tentando aliviá-la de seu peso fundamentalista, a fim de apresentá-la como um lugar de disputa política permanente (BUTLER, 1998, p. 17).


A mesma dinâmica que visa desvincular o universal de seu peso fundacionalista, descolado das relações de poder-saber, se aplicam também a noção de sujeito. Assim como o universal não é um dado “a priori”, mas se reivindica desde um material disponível, condicionado e condicionador, como uma potência ativa, do mesmo modo o sujeito nunca é seu ponto de partida. Tem-se então, não um sujeito universal constituinte, descolado de seu contexto histórico-cultural e sim um sujeito constituído por diferenciação dentro de determinadas malhas relacionais desprovistas de pressupostos fundacionalistas e metafísicos (BENHABIB et al., 1995).


Nessa altura, talvez seja interessante lembrar que Foucault relacionava o deslocamento do sujeito intencional com as relações de poder modernas que ele mesmo associava com a guerra. O que ele queria dizer, penso eu, é que sujeitos que instituem ações são eles mesmos efeitos instituídos de ações anteriores, e que o horizonte em que agimos está aí como uma possibilidade constitutiva de nossa capacidade de agir, não mera ou exclusivamente como um campo exterior ou teatro de operações. Mas o que talvez seja mais significativo é que as ações instituídas via aquele sujeito fazem parte de uma cadeia de ações que não pode mais ser entendida como unilinear quanto à direção, ou previsível quanto aos resultados (BUTLER, 1998, p. 19).


Do mesmo modo que a noção de universal sofre um deslocamento, assim o registro da subjetividade adquire aqui uma nova conotação. Se em “Gender Trouble” havia uma leitura predominante nietzschiana em que o sujeito era um mero produto linguístico, com a entrada em cena do aparato teórico foucaultiano o sujeito passa agora para a esfera epistemológica em suas relações de poder-saber. Butler reconhece que, na crítica de Foucault, o sujeito não é nem fundamento, nem produto.

Contudo, sem negar esta ideia, em certo sentido, ela destaca-se de seu mentor, pois afirmar que o sujeito não é nem mero fundamento, nem mero produto é o mesmo que afirmar que o sujeito é tanto constituinte quanto constituído. É constituinte sob a ótica de uma potência ativa em que atuar e ser atuado não podem compreender-se como duas instâncias nacionalisticamente separadas. É constituído, pois seu atuar dá-se sempre dentro de uma malha relacional configurada por estruturas culturalmente articuladas de poder e de saber que o precedem, possibilitando diferentes traduções do seu significado (BUTLER, 1998; BENHABIB et al., 1995). Neste horizonte teórico, o sujeito não é mais um resultado semântico, enquanto a linguagem passa a ter o papel de instrumento que abre a possibilidade ressignificar o sujeito (BUTLER, 2009).

Essa dinâmica pode ser definida como uma perichoresis, ou relação constituinte, e o sujeito como produto pericorético[7]. Não se trata de negar a categoria de sujeito, mas de afirmar sua abertura constitutiva como permanente possibilidade de ressignificação a partir de uma determinada matriz linguística-cultural de poder e de saber em oposição à noção de sujeito como hipóstase estática cujo conteúdo epistemológico é heuristicamente considerado (BUTLER, 1998). Butler não busca pressupor condições de possibilidade para a ação política, mas a compreensão do caráter contingente do conteúdo normativo das estruturas de poder e saber. Uma vez evidenciada dita contingência radical, buscam-se modos de releitura mais inclusivos e democráticos.

Porém, começa a surgir em Butler uma demanda ética diante da violência estatal (BUTLER, 2012) e da precariedade constitutiva da condição humana que exigirá dela um novo giro na direção de uma maior consistência ontológica das noções de universal e sujeito em obras como “Precarious Life” (2004), “Parting Ways” (2012) e “Quadros de guerra” (2015b), dentre outras que serão mencionadas.


Em direção a um universal formal e materialmente afirmado


A partir do 11 de setembro de 2001, impõem-se para Butler novas exigências que lhe demandarão reflexão e deslocamentos em seu pensamento. O conceito-chave desta mutação teórica gira ao redor da noção de precariedade. A partir de “Precarious Life”, o foco não se encontra mais na violência de gênero. Diante da experiência despolitizada e concreta da violência, da morte e do luto, questiona-se agora como responder aos desafios da igualdade no quadro de uma comunidade política global (BUTLER, 2004).

A violência mostra o grau de dependência do outro até o ponto de ter a própria existência anulada pelo outro, deixando patente a codependência constitutiva do ser humano. O fenômeno da violência só é possível graças a este laço. Ser agredido faz pensar a interdependência como condição da vida política global. Uma vez evidenciada em textos anteriores a especificidade das convenções político-normativa e feita a crítica a noção de universal herdada da tradição iluminista e racionalista, começa a emergir agora em Butler uma segunda camada não convencional de caráter relacional e que é, sobre este aspecto, pré-política em quanto condição inerente ao ser humano e política em quanto relacional. Se os vínculos normativos que geram exclusão são convencionais e a precariedade revela ao mesmo tempo igualdade e codependência, diante do potencial de agressão, surge a questão: porque esta é tolerada e até mesmo aceita para certas pessoas e para outras não? Surge assim a exigência fundacional de uma ética da não violência, colocando-se na posição de quem é agredido e do privilégio de agredir:


Ser ferido significa ter a chance de refletir sobre o ferimento, descobrir os mecanismos de sua distribuição, descobrir quem mais sofre com fronteiras permeáveis, violência inesperada, desapropriação e medo, e de que maneira. Se a soberania nacional é desafiada, isso não significa que ela deva ser reforçada a todo custo, se isso resultar na suspensão das liberdades civis e na supressão da dissidência política. Pelo contrário, o deslocamento do privilégio do Primeiro Mundo, por mais temporário que seja, oferece a chance de começar a imaginar um mundo em que a violência possa ser minimizada, na qual uma interdependência inevitável se torna a base da comunidade política global(BUTLER, 2004, p. XII-XIII).[8]


A agressão, quando efetivada, carrega consigo o luto e quem conta como pessoa digna de luto. Dita experiência revela contemporaneamente as estruturas de poder-saber que determinam quais vidas são valiosas e uma experiência universal de um nós articulado não a partir de uma universalidade “a priori” em um movimento descendente, mas de uma experiência concreta comum a todos em um movimento ascendente (BUTLER, 2004). Esta experiência acentua ainda mais o caráter social da condição humana. A perda revela precisamente os vínculos que temos com os outros e que determinam quem somos.


Muitas pessoas pensam que o luto está privatizando, que nos leva a uma situação solitária e, nesse sentido, despolitiza-se. Mas acho que isso fornece um senso de comunidade política de uma ordem complexa e faz isso, em primeiro lugar, trazendo à tona os laços relacionais que têm implicações para teorizar a dependência fundamental e a responsabilidade ética (BUTLER, 2004, p. 22).[9]


Segundo essa autora, dita codependência determinante do eu revelada pelo luto está enraizada na corporeidade humana: “Esta disposição de nós mesmos fora de nós mesmos parece seguir-se da vida corporal, da sua vulnerabilidade e da sua exposição” (BUTLER, 2004, p. 25)[10]. Como seres corporais, estamos expostos a necessidades físicas e sociais. Ainda que analiticamente seja possível separar físico e social, estas duas realidades dão-se juntas na realidade como uma ontologia social sintética (BUTLER, 2015b) em que não existe uma linha divisória clara entre a vulnerabilidade entendida como precariedade física-relacional (BUTLER, 2004) e a precariedade como enquadramento social em que a vida é, ao menos potencialmente, passível de luto (BUTLER, 2004). São dois aspectos que analiticamente podem ser considerados de modo separados, mas que, na realidade, estão implicados mutuamente:


Nesse sentido, se a vulnerabilidade é uma pré-condição para a humanização e a humanização ocorre de maneira diferente através de normas variáveis de reconhecimento, segue-se que a vulnerabilidade é fundamentalmente dependente das normas de reconhecimento existentes para ser atribuída a qualquer sujeito humano (BUTLER, 2004, p. 43).[11]


A precariedade assim pode ser entendida tanto como pressuposto orientado pelo discurso. Esta poderia ser uma descrição da precariedade mais do ponto de vista do sujeito do luto. Mas como o luto entranha uma relação binária “eu-tu” que forma um nós, é possível também descrever a precariedade desde este nós. É precisamente isso que a autora faz em “Parting Ways” (BUTLER, 2012).

Ao tratar a questão do sionismo, desenvolve-se o tema da coabitação. Partindo do ponto que os laços políticos-nacionais são essencialmente convencionais e de que, por tanto, não existe um vínculo natural entre a terra e o povo, resta como ponto de análise o fato (novamente a abordagem de Butler aqui é ascendente) de que não se escolhe com quem se habita neste mundo. A dialética entre determinismo e indeterminismo, na articulação da noção de liberdade, encontra aqui seu ponto de fixo no pensamento do Butler: um fato determinado, uma característica universal da condição humana informada por um conteúdo objetivo a partir do qual se pode construir uma política de convivência pacífica.


O ponto filosófico e político de sua réplica expressa a Eichmann (e aos juízes) é que é preciso deixar claro que não há o direito de escolher com quem coabitar a terra ou o mundo [...]. A coabitação com os outros que nunca escolhemos é, com efeito, uma característica permanente da condição humana (BUTLER, 2012, p. 166). [12]

Neste horizonte, tem-se a rubrica universal da igualdade que vai além contexto social e jurídico, pautando juízos de valor à luz da pluralidade constitutiva do ser humano visando uma coabitação pacífica com o outro que é diferente e com quem não se escolhe estar junto (BUTLER 2012). Dita coabitação apresenta novamente duas dimensões indissociáveis e implicadas mutuamente: a coabitação física que resulta na não escolha de com quem se habita, (BUTLER, 2015a) e, por outro lado, a coabitação como causa da identidade subjetiva (BUTLER, 2012; 2015a), dado que “o diálogo que eu sou não é finalmente separável da pluralidade que me torna possível” (BUTLER, 2012, p. 173):[13] os outros com os quais não escolhi coabitar, com seu engajamento social e linguístico, modelam minha identidade dentro de modos de relacionalidade (BUTLER, 2015a).


Uma ontologia social diferente teria que partir dessa condição compartilhada de precariedade para refutar aquelas operações normativas, penetrantemente racistas, que decidem de antemão quem conta como humano e quem não. O objetivo não é reabilitar o humanismo, mas sim aceitar a animalidade humana e a precariedade compartilhada. Talvez essa característica de nossas vidas possa se tornar a base dos direitos à proteção contra o genocídio deliberado e formas fatais de negligência internacional e estatal e o abandono de populações precárias (BUTLER, 2012, p. 174-175).[14]


Assim, pode-se distinguir no pensamento de Butler os seguintes aspectos: precariedade como vulnerabilidade da condição humana resultante da corporeidade e sua relacionalidade inerente (BUTLER, 2004; 2015b); precariedade como condição precária politicamente induzida (2009, 2015b). A vulnerabilidade é a condição para um enquadramento político em que relações de poder e de saber conferem inteligibilidade à vida, determinando quais vidas são dignas de luto. Por outro lado, a condição precária, ou seja, a precariedade politicamente induzida por um determinado enquadramento epistemológico, pode produzir a alocação diferencial da precariedade (2015b) como vulnerabilidade. Assim, o luto, a interdependência, a coabitação, a vulnerabilidade e a precariedade aparecem no horizonte especulativo de Butler como conteúdo positivo (matéria) de demandas éticas universais (forma). No entanto, estes elementos não são compreendidos de modo analítico descendente, e sim sintético-ascendente, desde uma situação concreta em que os conteúdos são tidos como pré-requisitos reais que só se realizam dentro de relações e estruturas sociais. Estas relações e estruturas fazem a leitura do material bruto ocasionando eventualmente exclusões e desigualdades. Mesmo não negando o caráter do sujeito como produto de uma relação constitutiva (BUTLER, 2012) esta nova nuance da noção de universal abre as portas para um sujeito protagonista da ação, como se pode observar no fragmento a seguir:


[...] devemos conceber instituições e políticas públicas que ativamente preservem e afirmem o caráter não escolhido da coabitação aberta e plural. No que ela criticou em Eichmann foi sua incapacidade de criticar o direito positivo, isto é, a incapacidade de se distanciar dos requisitos que a lei e a política lhe impunham; em ão apenas vivemos com aqueles que nunca escolhemos e com os quais não sentimos nenhum sentimento imediato de pertencimento social, mas também somos obrigados a preservar essas vidas e a pluralidade aberta que é a população global (BUTLER, 2015a, p. 112-113).[15]


Em outras palavras, diante do universal formal e materialmente negado, tem-se um sujeito fictício; diante do universal afirmado em sua forma e negado por seu conteúdo, tem-se um sujeito pericorético constituído; diante do universal formal e materialmente afirmado, tem-se um sujeito constituinte vinculado moral e eticamente não a uma norma convencional, mas a pluralidade e igualdade inerente à condição humana concreta. Neste sentido afirma Butler:


De fato, o que ela criticou em Eichmann foi sua incapacidade de criticar o direito positivo, isto é, a incapacidade de se distanciar dos requisitos que a lei e a política lhe impunham; em outras palavras, ela o culpa por sua obediência, sua falta de distância crítica ou sua incapacidade de pensar. Mas, mais do que isso, ela o culpa também por não perceber que o pensamento implica o sujeito em uma sociabilidade ou pluralidade que não pode ser dividida ou destruída por meio de objetivos genocidas. Na sua opinião, nenhum ser pensante pode tramar ou cometer genocídio (BUTLER, 2012, p. 155).[16]


Esse excerto mostra os pontos nodais da argumentação em curso: em primeiro lugar, o universal negado em seu caráter convencional que, em segundo lugar, demanda uma crítica que termina na afirmação de certas condições humanas pré-jurídicas. Neste ponto, pareceria que se está a elucidar de modo forçado uma leitura normativa ou iluminista do pensamento de Butler ou então a existência duas “Butlers” em seus textos. A própria autora é muito cuidadosa ao ressaltar que não há uma ruptura epistemológica em seu pensamento no que diz respeito à noção e ao papel do universal, mas um diferente modo de abordar o problema. Em geral, isso fica evidente já na distinção feita anteriormente de precariedade como vulnerabilidade em sua conotação corporal e precariedade como condição precária politicamente induzida, ou a distribuição desigual da precariedade que se dá em uma relação concreta de poder e de saber.

Especificamente Butler, em seus textos de corte mais normativos, destaca a continuidade de seu pensamento e a não rendição a uma leitura fundacionalista da ação política. Seu discurso jamais se articula desde uma ética metapolítica em que valores ou ideais com realidade ontologicamente consistentes e densas são o paradigma de ação. O movimento de Butler, ao contrário, é primeiramente horizontal, não ambicionando nada mais que apontar a relatividade da norma derivada das relações de poder-saber. Posteriormente seu pensamento assume um perfil vertical ascendente sem, contudo, negar sua horizontalidade. Pode-se, portanto, afirmar que para a autora, o universal é um horizonte vertical operacionalizado com a noção de juízo prático ou estético (BUTLER, 2012).


Conclusão


Após esta breve e inicial análise do pensamento de Judith Butler, visando jogar luz sobre a noção de universal subjacente a muitas de suas exposições, pode-se concluir que, em seus textos, há um certo movimento que vai desse uma forte rejeição a uma certa aceitação de conceitos universais como fundamento de uma ação política. O que se buscou foi uma tentativa, ou quem sabe uma provocação, sobre a natureza destes deslocamentos. Neste sentido, avançamos a proposta de fazer uma importante distinção ao trabalhar a ideia de universal: seu conteúdo ou matéria e sua forma expressa na norma.

Em textos mais juvenis, Butler apresenta um posicionamento bastante contrário à noção de universal como fundamento e medida da ação política. Sua crítica vai direcionada tanto ao conteúdo quanto à forma. Isso fica claro pelo uso que faz de Nietzsche em seus textos, tendo como horizonte especulativo uma noção genealógica da moral e a mutabilidade dos valores. Neste quadro, sujeito e universalidade resultam de uma ficção linguística e cultural.

Em outras obras posteriores à “Gender Trouble”, Butler, usando cada vez mais o aparato teórico de Foucault, articula seu pensamento sob a ótica das estruturas de poder e de saber, fazendo uma transição para uma análise de cunho mais epistemológico das noções de sujeito e universal. Assim, do ponto de vista formal, o universal alinha-se com o poder e em sua materialidade com os regimes de verdade sobre o bem. Por sua forma o universal é fonte de exclusão, pois impõe como norma um regime de valor que por própria definição é relativo. Por esse motivo, os textos da autora assumem um olhar mais positivo sobre a noção do universal. As reivindicações de quem ficou excluído do universal (BUTLER, 1998) parecem estar motivadas precisamente em sua própria força normativa como potencial de ação política, sem deixar de afirmar, contudo, o caráter genealógico do seu conteúdo. Em outras palavras, o universal se encara como objetivo e válido pela forma normativa e relativo pela sua matéria.

Por último, começa a emergir em Butler uma noção de sujeito e de universal dotados de maior densidade ontológica. A partir de “Precarious Life”, as noções de precariedade, vulnerabilidade, coabitação, luto, dentre outras, levam o leitor a ter certa impressão de um giro normativo no seu pensamento em que o universal se afirma tanto por sua forma quanto por sua matéria. Tais noções universais são colocadas como princípios sobre os quais se poderia construir o sujeito da ação política.

Cabe ressaltar que tal conteúdo não se apresenta como algo engessado, desenhado em seus mínimos pormenores. É um conteúdo real, mas com um alto grau de indeterminação e que, enquanto tal, não existe. A precariedade e a coabitação só se realizam segundo certas modalidades resultantes das relações de poder vigentes (BUTLER, 2009; 2015a). A tarefa da ética e da política aqui é denunciar criticamente as diferentes modalidades não igualitárias em que esta precariedade é distribuída e gerenciada (BUTLER, 2015a). Fica claro que sua crítica vai dirigida não ao universal enquanto tal, mas à sua versão racionalista e contratualista. Um universal que ambiciona uma leitura exaustiva do todo a partir das partes e que vai além do material objetivo disponível. A crítica de Butler está precisamente neste salto não justificado do concreto para o abstrato, engendrando um forte potencial de exclusão arbitrária.

Perante esta análise, Oferecem-se duas ideias como horizonte de pesquisa visando enriquecer o debate no contexto da filosofia política de Judith Butler. A autora, em seu esforço por desvincular-se da dependência de um universal racionalista, especialmente nos textos mais recentes em que emerge no universal um conteúdo objetivo, usa com bastante frequência a noção de modalidade, ou seja, este conteúdo positivo é dotado de um alto grau de indeterminação, fazendo com que o universal assuma um caráter aberto. A realização do conteúdo dá-se sempre dentro de uma matriz sócio-histórica-cultural que canaliza o como este universal se realiza. Seria, portanto, enriquecedor para o debate um estudo mais detalhado desta noção de modalidade que começa a ser muito usada pela autora buscando suas raízes e possíveis pontos de contato com outros autores como Leibniz e Suárez (AGAMBEN, 2016).

Outro ponto de interesse seria um confronto desta noção de universal tal como a delineia Butler (1990) com a noção de universal de outras tradições filosóficas como a de Aristóteles. Nossa proposta é que o lócus deste confronto não se encontra tanto na ética nem na política do estagirita, mas em sua física. O modo como a matéria-prima interage com a forma substancial se aproxima muito do modo como Butler descreve a ação do sujeito e sua própria formação dentro das estruturas sociais de poder e de saber. A matéria-prima é o conteúdo ou substrato que recebe a configuração da forma substancial, mas estes dois pilares da filosofia aristotélica não podem ser entendidos racionalisticamente como duas coisas e sim como dois princípios reais que, contudo, não se dão isoladamente. A matéria-prima é pura indeterminação e a forma o que configura a matéria de determinado modo.

Porém, no mundo real, não existe a matéria sem nenhuma determinação formal, esta pura potência enquanto tal não existe. O que se encontra na natureza é a matéria já configurada sob determinada forma como uma potência ativa. A matéria concreta sobre a qual se trabalha já foi atuada por algo anterior condicionando assim o que se pode fazer com ela. Imagine-se, por exemplo, uma barra de ferro: apesar de ela estar constituída de matéria que é potencialmente qualquer coisa, sua potencialidade encontra-se já contraída pelo seu contexto que é estar configurada como uma barra de ferro. Não tem, portanto, autonomia ou potencial para que esta se configure, por exemplo, com uma planta (ARISTÓTELES, 1995; 2002).


Esse mesmo entendimento parece ter Butler ao tratar o universal como horizonte vertical e o sujeito como produto pericorético. No que se refere ao universal, Butler é muito precavida em advertir constantemente seus leitores de uma precariedade desencarnada. Esta é sempre uma condição humana inerente, resultado de nossa corporeidade, mas uma corporeidade que atua e é atuada em uma situação que determino politicamente como esta precariedade na prática se manifesta (BUTLER, 2015a). Do ponto de vista do sujeito, este sim é autônomo, mas esta autonomia não está deslocada do contexto, mas sim condicionada e exercitada a partir de um contexto em que o sujeito ao mesmo tempo que atua, o faz enquanto já atuado dentro de calces contextuais: “Assim como a “matéria” dos corpos não pode aparecer sem uma configuração que lhe dê forma e vida, tampouco a “matéria” da guerra pode aparecer sem uma forma ou enquadramento condicionador e facilitador” (BUTLER, 2015b, p. 50-51).

É possível contra-argumentar que a presente leitura de Butler seja em realidade uma ressignificação ou subversão de suas ideias. Somente ela poderia dizer, mas certamente Butler concordaria que toda citação não é apenas repetição, mas repetir de determinado modo alterando e subvertendo, em certo sentido, seu significado original (BUTLER, 2009). Considera-se isso positivo se se pensa a filosofia como arte de fazer perguntas. Muitas vezes, nem se chega a uma resposta, pois as perguntas vão simplesmente perdendo seu vigor e interesse sendo substituídas por outras, demandadas por novas situações. A própria Butler experimentou isso no debate modernidade versus pós-modernidade como o qual se começou esta análise e que nunca foi resolvido, mas simplesmente superado. Esta linha de raciocínio é a mesma indicada por John Dewy ao refletir sobre a natureza dos problemas filosóficos:


Ideias antigas cedem devagar; pois são mais do que formas e categorias lógicas abstratas. São hábitos, predisposições, atitudes profundamente enraizadas de aversão e preferência. Além disso, persiste a convicção - embora a história mostre que é uma alucinação que todas as perguntas que a mente humana fez são questões que podem ser respondidas em termos das alternativas que as próprias perguntas apresentam. Mas, na verdade, o progresso intelectual geralmente ocorre por meio do simples abandono de perguntas, juntamente com as alternativas que elas assumem. Um abandono que resulta de sua vitalidade decrescente e de uma mudança de interesse urgente. Nós não as resolvemos, mas as superamos (DEWEY, 1910, p. 19).[17]


Em certo sentido, essa atitude de fazer perguntas é a mais saldável em filosofia, pois quem as faz não é nem um dogmático que possui todas as respostas prontas e imutáveis, caso contrário não faria perguntas. Tampouco quem faz perguntas será um cético pessimista, pois, de fato, quem considera não existir respostas, igualmente não fará perguntas.


Referências


AGAMBEN, Giorgio. The use of Bodies. Tradução inglesa de Adam Kotsko. California: Stanford University Press, 2016.

ARISTÓTELES. Física. Tradução castelhana de Guillermo R. de Echandía. Madrid: Gredos, 1995.

ARISTÓTELES. Metafísica. 2ª ed. Ensaio introdutório, tradução do texto grego, sumário e comentários de Giovanni Reale. Tradução portuguesa Marcelo Perine. São Paulo. Edições Loyola. 2002. v. 2.

BENHABIB, Seyla; BUTLER, Judith; CORNELL, Drucilla; FRASER, Nancy: Feminist Contentions: A Philosphical Exchange. New York: Routledge, 1995.

BUTLER, Judith. Fundamentos Contingentes: O Feminismo e a questão do Pós-modernismo. Cadernos Pagu, Campinas, n. 11, p. 11-42. 1998.

BUTLER, Judith. Gender Trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge, 1990.

BUTLER, Judith. Notes Towards a Performative Theory of Assembly. London: Harvard University Press, 2015a.

BUTLER, Judith. Parting Ways: Jewishness and the Critique of Zionism. New York: Columbia University Press, 2012.

BUTLER, Judith. Performativity, Precarity and Sexual Politics. AIBR. Revista de Antropologia Iberoamericana, Madrid, v. 4, n. 3, p. i-xiii. Set-Dez 2009.

BUTLER, Judith. Precarious Life: The Power of Mourning and Violence. New York: Routledge, 2004.

BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto. Tradução de Sérgio Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015b.

DEWEY, John. The Influence Of Darwin On Philosophy: And Other Essays in Contemporary Thought. New York: Henry Holt and Company, 1910.

DUARTE, André; CÉSAR, Maria Rita de Assis. Inútil resistir ao dispositivo da sexualidade? Foucault e Butler sobre corpos e prazeres. Aurora, Curitiba, v. 28, n. 45, p. 949-967, set./dez. 2016.

KANT, Immanuel. Fundamentaçao da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2011.

KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 12. ed. São Paulo: Perspectiva, 2013.

NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. Trad. Paulo César de Souza. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

PLATÃO. Parmênides. Tradução, apresentação e notas Maura Iglésias e Fernando Rodrigues. São Paulo: Loyola, 2003.

SILVA, Maria Freira da. O princípio trinitário das relações e a complexidade ecológica. Ciências da Religião – História e Sociedade, São Paulo, v. 4, n. 4, p. 38-58. 2006.

SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão. 13. ed. Petrópolis: Vozes, 2005.

[1] The performative invocation of a nonhistorical before becomes the foudational premise that garantees a presocial ontology of persons who freely consent to be governed and, thereby constitute the legitimacy of the social contratact (todas as traduções de textos que ainda não constam de uma edição em língua portuguesa foram feitas por mim). [2] And what is ‘sex’ anyway? Is it natural, anatomical, chromosomal, or hormonal, and how is a feminist critic to assess the scientific discourses which purport to stablish such ‘facts’ for us? […] Are the ostensibly natural facts of sex discursively produced by various scientific discourses in the service of other political and social interests? [3] The political assumption that there must be a universal basis for feminism, one which must be found in an identity assumed to exist cross-culturally, often accompanies the notion that the oppression of women has some singular form discernible in the universal or hegemonic structure of patriarchy or masculine domination. [4] to formulate within this constituted frame a critiquc of the categories of identity that contemporary juridical structures engender, naturalize, and immobilize. [5] Traduzido para o português pela revista “Cadernos Pagu” (BUTLER, 1998). [6] Tomando emprestado as afirmações de Jane Flax sobre certos princípios-chave do pós-modernismo, Benhabib elabora essa separação em relação às três teses seguintes: a morte do homem, a morte da história e a morte da metafísica. Benhabib argumenta que todas essas teses podem ser articuladas em versões fracas e fortes. As versões fracas oferecem motivos para o apoio feminista. No entanto, Benhabib afirma que, na medida em que o pós-modernismo passou a ser equiparado às fortes formulações dessas teses, ele representa aquilo que devemos rejeitar. [7] Em sua assunção etimológica, o termo “perichoresis” designava uma dança de roda em que os participantes se moviam um ao redor do outro, entrelaçando-se. Como noção filosófica, a palavra assume no estoicismo e no neo-platonismo a conotação de relação e compenetração recíproca de corpo e alma. No período patrístico, foi usada primeiro por Gregório Nazianzeno em seu sentido neo-platônico para ilustrar a relação entre as duas naturezas de Cristo. Depois, João Damasceno o aplica a teologia trinitária: a diferença entre Pai, Filho e Espírito Santo se dá não pela substância, mas por uma relação constitutiva própria de cada sujeito pela qual se define e define os demais sujeitos da Trindade. (SILVA, 2006). [8] To be injured means that one has the chance to reflect upon injury, to find out the mechanisms of its distribution, to find out who else suffers from permeable borders, unexpected violence, dispossession, and fear, and in what ways. If national sovereignty is challenged, that does not mean it must be shored up at all costs, if that results in suspending civil liberties and suppressing political dissent. Rather, the dislocation from First World privilege, however temporary, offers a chance to start to imagine a world in which that violence might be minimized, in which an inevitable interdependency becomes acknowledged as the basis for global political community. [9] Many people think that grief is privatizing, that it returns us to a solitary situation and is, in that sense, depoliticizing. But I think it furnishes a sense of political community of a complex order, and it does this first of all by bringing to the fore the relational ties that have implications for theorizing fundamental dependency and ethical responsibility. [10] This disposition of ourselves outside ourselves seems to follow from bodily life, from its vulnerability and its exposure. [11] Nesse sentido, se a vulnerabilidade é uma pré-condição para a humanização, e a humanização ocorre de maneira diferente através de normas variáveis de reconhecimento, segue-se que a vulnerabilidade é fundamentalmente dependente das normas de reconhecimento existentes para ser atribuída a qualquer sujeito humano. [12] The philosophical and political point of her voiced rejoinder to Eichmann (and to the judges) is that one must make clear that there is no right to choose with whom to cohabit the earth or world […]. Cohabitation with others we never choose is, in effect, an abiding characteristic of the human condition. [13] the dialogue that I am is not finally separable from the plurality that makes me possible. [14] A different social ontology would have to start from this shared condition of precarity in order to refute those normative operations, pervasively racist, that decide in advance who counts as human and who does not. The point is not to rehabilitate humanism, but rather to accept human animality and shared precarity. Perhaps this feature of our lives can become the basis for the rights to protection against deliberate genocide and fatal forms of international and state negligence and abandonment of precarious populations. [15] […] we must devise institutions and policies that actively preserve and affirm the unchosen character of open-ended and plural cohabitation. Not only do we live with those we never chose and with whom we may feel no immediate sense of social belonging, but we are also obligated to preserve those lives and the open-ended plurality that is the global population. [16] Indeed, what she faulted Eichmann for was his failure to be critical of positive law, that is, a failure to take distance from the requirements that law and policy imposed upon him; in other words, she faults him for his obedience, his lack of critical distance, or his failure to think. But, more than this, she faults him as well for failing to realize that thinking implicates the subject in a sociality or plurality that cannot be divided or destroyed through genocidal aims. In her view, no thinking being can plot or commit genocide. [17] Old ideas give way slowly; for they are more than abstract logical forms and categories. They are habits, predispositions, deeply engrained attitudes of aversion and preference. Moreover, the conviction persists — though history shows it to be a hallucination that all the questions that the human mind has asked are questions that can be answered in terms of the alternatives that the questions themselves present. But in fact intellectual progress usually occurs through sheer abandonment of questions together with both of the alternatives they assume an abandonment that results from their decreasing vitality and a change of urgent interest. We do not solve them: we get over them.

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