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  • Ivo Fernando da Costa

O universal como um horizonte vertical no pensamento político de Judith Butler


Publicado em: COSTA, Eduardo da; PEREIRA, André Phillipe (Orgs.). Ensaios em perspectiva filosófica e teológica. Jaraguá do Sul: Mundo Acadêmico, 2019, p. 186-215. https://doi.org/10.5281/zenodo.3687018



Introdução


Este trabalho visa fazer uma leitura da noção de universal no pensamento de Judith Butler, examinando a seguinte hipótese interpretativa: a partir da formulação do conceito de “precariedade”, em “Precarious Life” (2004), os textos de Butler aparentam sofrer uma inflexão na direção de um fundamento ético-político de caráter normativo, anteriormente recusado pela autora, como evidenciado em seu debate com Nancy Fraser e Seyla Benhabib nos anos 90. Trata-se, portanto, de interrogar o impacto desta mutação teórica que surge nas entrelinhas da produção filosófica da autora quando esta instaura a “precariedade” e a “codependência” como condições ético-políticas que devem orientar pautas destinadas a tornar possível e viável a vida em comum.

Reconhece-se que tal objetivo configura-se como um empreendimento no mínimo um tanto quanto audaz dado o perfil da autora engajada na ação em prol do feminismo à luz de tradições filosóficas como as de Nietzsche e Foucault. Além disso, salvo em algumas ocasiões, o problema do universal não costuma ser tratado diretamente nas obras de Butler. Ele aparece na forma de uma crítica pós-estruturalista, ou de modo velado como raiz e pano de fundo que dá suporte às suas argumentações, sejam contra ou a favor como se verá mais adiante. O que se busca neste artigo é olhar além ou através do véu das discussões concretas que estabelece Butler, ao longo de algumas de suas principais obras, e evidenciar o papel da noção de universal como eixo argumentativo.

Esquematicamente, este objetivo desdobrar-se-á em três etapas: o universal negado no seu conteúdo e na sua forma em “Gender Trouble” (BUTLER, 1990); o universal formalmente afirmado, mas negado em seu conteúdo no debate em torno a questão da normatividade (BUTLER, 1998); o universal formal e materialmente afirmado a partir de “Precarious Life” (BUTLER, 2004). Igualmente serão abordadas as diferentes noções de sujeito que emergem de cada um destes três entendimentos de universal.


Gender Trouble”: O universal negado em seu conteúdo e forma


Em 1990, Judith Butler publica “Gender Trouble”, obra que a projeta em nível mundial, vindo a ocupar, assim, um espaço teórico disputado dentro do feminismo. O aspecto em questão, ao redor do qual orbitam as discussões no final da década de 80 e início dos anos noventa, é o debate em torno da normatividade. A preocupação da autora está centrada em um esforço de reflexão sobre a opressão de gênero e suas raízes fundacionalistas. E uma dessas raízes, se não a principal, é precisamente a categoria de universal que justifica teoricamente a exclusão da mulher.

Por este esse motivo, o modelo normativo do humanismo, como marco para o feminismo, é fortemente criticado e rejeitado pela autora (BUTLER, 1990). Entendendo a política como um espaço constantemente aberto de disputa, Butler posiciona-se contra a noção iluminista e contratualista de universal como uma ficção jurídica sob a roupagem de um fundamento ontológico sobre o qual se assenta e se julga a adequação de práticas políticas e morais: “A invocação performativa de um antes não histórico torna-se a premissa fundacional que garante uma ontologia pré-social de pessoas que consentem livremente em serem governadas e, assim, constituem a legitimidade do contrato social” (BUTLER, 1990, p. 3).[1]

Colocada em questão uma fundamentação ontológica do sujeito e da política, evidencia-se criticamente seu caráter social e histórico do qual emergem o sujeito e seus atributos universais legitimados pelo contrato social. Visto desde outra perspectiva, já não há um conjunto “a priori” de categorias a serem desveladas tal como se revelam as leis da física em uma ótica newtoniana. O quadro social é o resultado das relações de poder e de saber que, com seus jogos políticos, constroem um sujeito detentor de direitos presumidamente a-históricos e predicados alegadamente universais, mas que, em última análise, competem-lhe por força de uma convenção jurídico-política. Assim, tem-se uma leitura nietzschiana em que os fatos não dizem nada (NIETZSCHE, 2009), pois necessitam de um marco teórico-social de interpretação (KUHN, 2013) capaz de conferir sentido aos dados articulados pelo discurso científico.


E o que é "sexo" afinal de contas? É natural, anatômico, cromossômico ou hormonal, e como uma crítica feminista avalia os discursos científicos que pretendem estabelecer tais "fatos" para nós? […] São os fatos ostensivamente naturais do sexo discursivamente produzidos por vários discursos científicos a serviço de outros interesses políticos e sociais? (BUTLER 1990, p. 6-7).[2]


Sob essa ótica, sujeito e predicado não são mais que o resultado artificial da linguagem (NIETZSCHE, 1992), o que abre espaço para evidenciar sua verdadeira origem genealógica. Transladada esta ficção ontológica para o campo da teoria feminista, tem-se como resultado a leitura binária e estática do gênero com a predominância do masculino sobre o feminino (DUARTE; CÉSAR, 2016). Por esse motivo, Butler (1990), em “Gender Trouble”, mostra uma forte recusa à noção de universal.


O pressuposto político de que deve haver uma base universal para o feminismo encontrada em uma identidade supostamente existente transculturalmente, frequentemente acompanha a noção de que a opressão das mulheres tem alguma forma singular discernível na estrutura universal ou hegemônica do patriarcado ou dominação masculina (BUTLER, 1990, p. 3).[3]

Diante da consensualidade dos padrões políticos-normativos, essa autora traça um ponto de contato com o pensamento de Foucault ao inquirir sobre os mecanismos que abrem o caminho a certo “status quo” operativo que, por meio de práticas excludentes, fundamentam um entendimento do sujeito como hipóstase estática em predicados necessários. A fragilidade de tal metafísica da substância (BUTLER, 1990) fica evidente diante de sujeitos que não se adéquam a ela ou que até mesmo buscam subverter o quadro normativo, abrindo espaço para uma crítica que denuncia a autoafirmação de um estatuto heurístico e meta-político dos fundamentos sobre os quais se assentam as relações sociais. Este pressuposto epistemológico de inteligibilidade, ao manter de sua praxe vinculante, termina por promover uma leitura ontológica forte de ditas relações que, em sua essência, são moldadas histórica e culturalmente.

Afirmado o caráter genealógico do discurso político como marco epistemológico que gera exclusão, é possível evidenciar os mecanismos de poder que atuam horizontalmente sem referência a um fundamento universal. Diante de novas circunstâncias, tal dinâmica possibilita a infiltração de diversos grupos não contemplados pela norma que reivindicam sua inserção nela, abrindo espaço para uma construção performativa do eu em seus atributos, estabelecendo, assim, um humanismo que garante o exercício existencial da liberdade no sentido sartreano da palavra em que a existência precede à essência e que o ser humano não é, mas se faz (SARTRE, 2005).

Neste primeiro texto, fica clara rejeição de Butler (1990) a noção de sujeito e de universal desde a perspectiva iluminista e contratualista da mesma. Como pensadora de superfície, Butler parte daquilo que objetivamente tem, sem pressupor nada além das evidências históricas visando “formular dentro deste marco constituído uma crítica das categorias de identidade que as estruturas jurídicas contemporâneas engendram, naturalizam e imobilizam” (BUTLER, 1990, p. 5).[4]

Além disso, parte-se do fato histórico sem um olhar vertical ampliado e generalizante que visa um esgotamento categorial, ou seja, não se toma como pressuposto uma construção do todo a partir da experiência de uma ou algumas de suas partes, dito salto só se justificaria como uma manobra das estruturas estabelecidas de poder. Vislumbra-se, deste modo, em Butler, uma rejeição do universal, tanto no que diz respeito à sua forma normativa quanto a seu conteúdo histórica e socialmente dado.


O universal afirmado em sua forma e negado em seu conteúdo


A entrada do pensamento de Foucault na discussão dá espaço para uma pequena, mas importante mudança de postura da autora em relação à noção de universal com a ideia de que as próprias estruturas excludentes de poder carregam consigo a gênese de sua subversão: sujeitos fora do cenário político, ao não se adequarem veritativamente a certas categorias que conferem privilégios, reconhecimento e direitos, eventualmente podem reivindicar sua inclusão dentro deste arcabouço estrutural (BENHABIB et al., 1995). Pode-se dizer que é a gênese de uma guinada de corte mais normativo no pensamento de Butler que começa a aparecer com a publicação dos debates “Feminist Contentions”.

A publicação de “Gender Trouble” eleva Butler ao patamar internacional, puxando-a para o centro do debate da teoria crítica versus pós-modernismo. Neste contexto, Butler é convidada a expor suas ideias e debater em um simpósio tido em setembro de 1990 em Praga. Nele encontram-se também Seyla Benhabib e Nancy Fraser como herdeiras da teoria crítica. Esses debates, com suas respectivas respostas, foram posteriormente publicados sob a forma de livro com o nome de “Feminist Contentions: A Philosphical Exchange”. O ensaio de Butler vem intitulado como “Contingent Foudantions: Feminism and the Question of ‘Postmodernism”[5]. Os eixos centrais da argumentação são os seguintes: posicionamento inicial sobre a noção de pós-modernismo e sua aplicabilidade; o problema do estabelecimento de normas além da política; o universal aberto; a questão do sujeito em geral e a questão do sujeito feminino em concreto. O debate vai além daquilo que o título da obra sugere: o embate entre duas posições exacerbadas, a saber, defensores da tradição iluminista com um sujeito completamente destacado da situação histórico-cultural fundado em uma noção de universal de matriz neoplatônica com um tal grau de consistência ontológica capaz de subsistir separadamente (BENHABIB et al., 1995) contra uma Butler heraclitana em que tudo está imerso em um perpétuo fluxo (BENHABIB et al., 1995).

Benhabib e Fraser (1995) afirmam a validez dos fundamentos da teoria crítica, mas lidos em uma chave pós-moderna ao reconhecer o papel do contexto de fronte ao sujeito e seus atributos universais. Com isto, busca-se harmonizar os dois mundos em um movimento vertical de descida que vai do universal como fundamento ao concreto como fundamentado em suas circunstâncias histórico-culturais. Tal posicionamento está motivado pela pressuposição de que, se tudo se reduz a uma construção social em suas relações de poder, não será possível um juízo crítico que dirima os conflitos. O que restaria então seria um universo pautado nas premissas de Nietzsche em que o termo “a quo” e o “ad quem” da ação humana é única e exclusivamente o poder. Benhabib e Fraser, portanto, advogam por uma versão deflacionada do pós-modernismo, evitando um giro niilista radical cuja consequência estaria no colapso teórico de qualquer causa em prol do feminismo:


Borrowing from Jane Flax’s claims about certain key tenets of postmodernism, Benhabib elaborates this separation in relation to the following three theses: the death of man, the death of history, and the death of metaphysics. Benhabib argues that all of these theses can be articulated in both weak and strong versions. The weak versions offer grounds for feminist support. However, Benhabib claims that in so far as postmodernism has come to be equated with the strong formulations of these theses, it represents that which we ought to reject (BENHABIB et al., 1995, p. 2).[6]


A preocupação de Butler é bem distinta da de Benhabib. Enquanto esta busca salvaguardar os fundamentos da tradição iluminista com um sujeito autônomo e livre como o protagonista crítico da história, aquela busca questionar as consequências políticas de uma afirmação acrítica de princípios “a priori” para a ação humana historicamente engajada. A política definida como espaço de disputa parece contradizer a si mesma ao estabelecer autoritariamente um fundamento meta-político. Butler aponta para o risco da presença de um autoritarismo velado por de trás desta filosofia política normativa (BUTLER, 1998).

Com tal noção de política, Butler passa à crítica do sujeito e do universal em si. O ponto central, colocado nas entrelinhas da argumentação, é a posta em questão das bases do pensamento filosófico ocidental no entendimento de realidade como limite e a metafísica como instrumento epistemológico de domesticação do ser-idêntico (PLATÃO, 2003). Nesta chave, o outro, o diferente, o que não se adéqua ao ente matematicamente desenhado, ficaria excluído da realidade. Este é o problema que a autora, desde diferentes direções está atacando: que o universal abstrato, entendido à maneira de fundamento paradigmático da realidade, carrega consigo a gênese da exclusão e da alteridade operada pelo fechamento de suas fronteiras, impedindo assim o exercício existencial da liberdade.

Partindo dessa crítica, Butler parece estabelecer uma importante distinção dentro da análise da noção de universal: do ponto de vista formal, o universal assume o caráter de necessidade dado que se algo é sempre válido, deve também ser necessário o qual, sob uma ótica axiológica, se traduz num discurso normativo. Tal discurso normativo tem seu referencial e, logo, sua justificativa em um dado conteúdo. Do ponto de vista de Kant (2011), o universal é capaz de fazer derivar, em um movimento descendente, a sua própria matéria do núcleo normativo como um prisma epistemológico cujo foco confere inteligibilidade e legitimidade a certos padrões comportamentais em detrimento de outros.

É neste ponto que a postura de Butler, diante do universal, começa a sofrer uma inflexão. Se em “Gender Trouble” havia uma profunda desconfiança da ideia de universal, visto que toda afirmação de uma posição produz uma exclusão, em “Contingent Foudations”, o foco não se encontra mais no conteúdo excluído da definição de universal, mas sim seu potencial de ação política contido em sua dimensão de poder. Isso se constata pelo fato de que os que não são compreendidos pelo arco de inteligibilidade do universal reivindicam poder estar sobre ele e seus benefícios, pensando o universal como indefinido em seu conteúdo, mas ainda imbuído do poder de mudar as estruturas sociais para uma lógica de inclusão. Sobre este aspecto, a noção de universal funciona produzindo efeito (BENHABIB et al., 1995).

Em outras palavras, reconhece-se na ideia de universalidade um potencial político, pois é em nome da universalidade que o excluído do universal reivindica a sua inclusão e, ao fazê-lo, mostra a contradição do universal que o exclui (BUTLER, 1998). É necessário, por tanto, pensar o universal como categoria aberta em que a possibilidade de ressignificação está posta pelos agentes que o invocam desde sua posição de excluídos, ampliando e fazendo uma crítica do universal como um dado. Pode-se concluir, então, que o universal se afirma por sua forma e se nega por sua matéria.


O termo ‘universalidade’ teria de ficar permanentemente aberto, permanentemente contestado, permanentemente contingente, a fim de não impedir de antemão reivindicações futuras de inclusão. Com efeito, de minha posição e de qualquer perspectiva historicamente restringida, qualquer conceito totalizador do universal impedirá, em vez de autorizar, as reivindicações não antecipadas e inantecipáveis que serão feitas sob o signo do “universal”. Nesse sentido, não estou me desfazendo da categoria, mas tentando aliviá-la de seu peso fundamentalista, a fim de apresentá-la como um lugar de disputa política permanente (BUTLER, 1998, p. 17).


A mesma dinâmica que visa desvincular o universal de seu peso fundacionalista, descolado das relações de poder-saber, se aplicam também a noção de sujeito. Assim como o universal não é um dado “a priori”, mas se reivindica desde um material disponível, condicionado e condicionador, como uma potência ativa, do mesmo modo o sujeito nunca é seu ponto de partida. Tem-se então, não um sujeito universal constituinte, descolado de seu contexto histórico-cultural e sim um sujeito constituído por diferenciação dentro de determinadas malhas relacionais desprovistas de pressupostos fundacionalistas e metafísicos (BENHABIB et al., 1995).


Nessa altura, talvez seja interessante lembrar que Foucault relacionava o deslocamento do sujeito intencional com as relações de poder modernas que ele mesmo associava com a guerra. O que ele queria dizer, penso eu, é que sujeitos que instituem ações são eles mesmos efeitos instituídos de ações anteriores, e que o horizonte em que agimos está aí como uma possibilidade constitutiva de nossa capacidade de agir, não mera ou exclusivamente como um campo exterior ou teatro de operações. Mas o que talvez seja mais significativo é que as ações instituídas via aquele sujeito fazem parte de uma cadeia de ações que não pode mais ser entendida como unilinear quanto à direção, ou previsível quanto aos resultados (BUTLER, 1998, p. 19).


Do mesmo modo que a noção de universal sofre um deslocamento, assim o registro da subjetividade adquire aqui uma nova conotação. Se em “Gender Trouble” havia uma leitura predominante nietzschiana em que o sujeito era um mero produto linguístico, com a entrada em cena do aparato teórico foucaultiano o sujeito passa agora para a esfera epistemológica em suas relações de poder-saber. Butler reconhece que, na crítica de Foucault, o sujeito não é nem fundamento, nem produto.

Contudo, sem negar esta ideia, em certo sentido, ela destaca-se de seu mentor, pois afirmar que o sujeito não é nem mero fundamento, nem mero produto é o mesmo que afirmar que o sujeito é tanto constituinte quanto constituído. É constituinte sob a ótica de uma potência ativa em que atuar e ser atuado não podem compreender-se como duas instâncias nacionalisticamente separadas. É constituído, pois seu atuar dá-se sempre dentro de uma malha relacional configurada por estruturas culturalmente articuladas de poder e de saber que o precedem, possibilitando diferentes traduções do seu significado (BUTLER, 1998; BENHABIB et al., 1995). Neste horizonte teórico, o sujeito não é mais um resultado semântico, enquanto a linguagem passa a ter o papel de instrumento que abre a possibilidade ressignificar o sujeito (BUTLER, 2009).

Essa dinâmica pode ser definida como uma perichoresis, ou relação constituinte, e o sujeito como produto pericorético[7]. Não se trata de negar a categoria de sujeito, mas de afirmar sua abertura constitutiva como permanente possibilidade de ressignificação a partir de uma determinada matriz linguística-cultural de poder e de saber em oposição à noção de sujeito como hipóstase estática cujo conteúdo epistemológico é heuristicamente considerado (BUTLER, 1998). Butler não busca pressupor condições de possibilidade para a ação política, mas a compreensão do caráter contingente do conteúdo normativo das estruturas de poder e saber. Uma vez evidenciada dita contingência radical, buscam-se modos de releitura mais inclusivos e democráticos.

Porém, começa a surgir em Butler uma demanda ética diante da violência estatal (BUTLER, 2012) e da precariedade constitutiva da condição humana que exigirá dela um novo giro na direção de uma maior consistência ontológica das noções de universal e sujeito em obras como “Precarious Life” (2004), “Parting Ways” (2012) e “Quadros de guerra” (2015b), dentre outras que serão mencionadas.


Em direção a um universal formal e materialmente afirmado


A partir do 11 de setembro de 2001, impõem-se para Butler novas exigências que lhe demandarão reflexão e deslocamentos em seu pensamento. O conceito-chave desta mutação teórica gira ao redor da noção de precariedade. A partir de “Precarious Life”, o foco não se encontra mais na violência de gênero. Diante da experiência despolitizada e concreta da violência, da morte e do luto, questiona-se agora como responder aos desafios da igualdade no quadro de uma comunidade política global (BUTLER, 2004).

A violência mostra o grau de dependência do outro até o ponto de ter a própria existência anulada pelo outro, deixando patente a codependência constitutiva do ser humano. O fenômeno da violência só é possível graças a este laço. Ser agredido faz pensar a interdependência como condição da vida política global. Uma vez evidenciada em textos anteriores a especificidade das convenções político-normativa e feita a crítica a noção de universal herdada da tradição iluminista e racionalista, começa a emergir agora em Butler uma segunda camada não convencional de caráter relacional e que é, sobre este aspecto, pré-política em quanto condição inerente ao ser humano e política em quanto relacional. Se os vínculos normativos que geram exclusão são convencionais e a precariedade revela ao mesmo tempo igualdade e codependência, diante do potencial de agressão, surge a questão: porque esta é tolerada e até mesmo aceita para certas pessoas e para outras não? Surge assim a exigência fundacional de uma ética da não violência, colocando-se na posição de quem é agredido e do privilégio de agredir:


Ser ferido significa ter a chance de refletir sobre o ferimento, descobrir os mecanismos de sua distribuição, descobrir quem mais sofre com fronteiras permeáveis, violência inesperada, desapropriação e medo, e de que maneira. Se a soberania nacional é desafiada, isso não significa que ela deva ser reforçada a todo custo, se isso resultar na suspensão das liberdades civis e na supressão da dissidência política. Pelo contrário, o deslocamento do privilégio do Primeiro Mundo, por mais temporário que seja, oferece a chance de começar a imaginar um mundo em que a violência possa ser minimizada, na qual uma interdependência inevitável se torna a base da comunidade política global(BUTLER, 2004, p. XII-XIII).[8]


A agressão, quando efetivada, carrega consigo o luto e quem conta como pessoa digna de luto. Dita experiência revela contemporaneamente as estruturas de poder-saber que determinam quais vidas são valiosas e uma experiência universal de um nós articulado não a partir de uma universalidade “a priori” em um movimento descendente, mas de uma experiência concreta comum a todos em um movimento ascendente (BUTLER, 2004). Esta experiência acentua ainda mais o caráter social da condição humana. A perda revela precisamente os vínculos que temos com os outros e que determinam quem somos.


Muitas pessoas pensam que o luto está privatizando, que nos leva a uma situação solitária e, nesse sentido, despolitiza-se. Mas acho que isso fornece um senso de comunidade política de uma ordem complexa e faz isso, em primeiro lugar, trazendo à tona os laços relacionais que têm implicações para teorizar a dependência fundamental e a responsabilidade ética (BUTLER, 2004, p. 22).[9]


Segundo essa autora, dita codependência determinante do eu revelada pelo luto está enraizada na corporeidade humana: “Esta disposição de nós mesmos fora de nós mesmos parece seguir-se da vida corporal, da sua vulnerabilidade e da sua exposição” (BUTLER, 2004, p. 25)[10]. Como seres corporais, estamos expostos a necessidades físicas e sociais. Ainda que analiticamente seja possível separar físico e social, estas duas realidades dão-se juntas na realidade como uma ontologia social sintética (BUTLER, 2015b) em que não existe uma linha divisória clara entre a vulnerabilidade entendida como precariedade física-relacional (BUTLER, 2004) e a precariedade como enquadramento social em que a vida é, ao menos potencialmente, passível de luto (BUTLER, 2004). São dois aspectos que analiticamente podem ser considerados de modo separados, mas que, na realidade, estão implicados mutuamente:


Nesse sentido, se a vulnerabilidade é uma pré-condição para a humanização e a humanização ocorre de maneira diferente através de normas variáveis de reconhecimento, segue-se que a vulnerabilidade é fundamentalmente dependente das normas de reconhecimento existentes para ser atribuída a qualquer sujeito humano (BUTLER, 2004, p. 43).[11]


A precariedade assim pode ser entendida tanto como pressuposto orientado pelo discurso. Esta poderia ser uma descrição da precariedade mais do ponto de vista do sujeito do luto. Mas como o luto entranha uma relação binária “eu-tu” que forma um nós, é possível também descrever a precariedade desde este nós. É precisamente isso que a autora faz em “Parting Ways” (BUTLER, 2012).

Ao tratar a questão do sionismo, desenvolve-se o tema da coabitação. Partindo do ponto que os laços políticos-nacionais são essencialmente convencionais e de que, por tanto, não existe um vínculo natural entre a terra e o povo, resta como ponto de análise o fato (novamente a abordagem de Butler aqui é ascendente) de que não se escolhe com quem se habita neste mundo. A dialética entre determinismo e indeterminismo, na articulação da noção de liberdade, encontra aqui seu ponto de fixo no pensamento do Butler: um fato determinado, uma característica universal da condição humana informada por um conteúdo objetivo a partir do qual se pode construir uma política de convivência pacífica.


O ponto filosófico e político de sua réplica expressa a Eichmann (e aos juízes) é que é preciso deixar claro que não há o direito de escolher com quem coabitar a terra ou o mundo [...]. A coabitação com os outros que nunca escolhemos é, com efeito, uma característica permanente da condição humana (BUTLER, 2012, p. 166). [12]

Neste horizonte, tem-se a rubrica universal da igualdade que vai além contexto social e jurídico, pautando juízos de valor à luz da pluralidade constitutiva do ser humano visando uma coabitação pacífica com o outro que é diferente e com quem não se escolhe estar junto (BUTLER 2012). Dita coabitação apresenta novamente duas dimensões indissociáveis e implicadas mutuamente: a coabitação física que resulta na não escolha de com quem se habita, (BUTLER, 2015a) e, por outro lado, a coabitação como causa da identidade subjetiva (BUTLER, 2012; 2015a), dado que “o diálogo que eu sou não é final